Há um guião não escrito para este tipo de turbulências no Bernabéu. Primeiro vem um mau resultado, claro, são os pontos os grandes ditadores. Depois disso, lentamente, mas sem travão possível, chegam os rumores na imprensa, baseados nas filtraciones, nas fontes no balneário, no que se diz e deixa saber.
Quando novembro principiou e o Real Madrid goleou (4-0) o Valencia, nada faria prever que este protocolo estivesse, cinco semanas passadas, em vigor. Naquele momento, os merengues levavam 13 triunfos em 14 encontros na temporada, Mbappé voava, novos protagonistas — Carreras, Mastantuono, Güler — ganhavam peso. Mas chegou a derrota com o Liverpool. Seguiram-se empates com o Rayo, o Elche e o Girona e a derrota com o Celta, tudo com só dois triunfos, diante Olympiakos e Athletic, pelo meio. A cada mau resultado, o ruído intensificava-se.
Arrancou a batalha mediática. Começaram as notícias. “O plantel queixa-se da quantidade e duração dos vídeos mostrados pela equipa técnica”; “há incómodo pelas exigências táticas pedidas”; “teme-se que haja uma overdose de instruções táticas nos treinos”.
A corrente foi seguida por vários gestos públicos. Fede Valverde dizendo que não gostava de ser lateral. Jude Bellingham a fazer caras feias. E Vinícius Júnior.
Vinícius a queixar-se de ser suplente. Vinícius a queixar-se de ser titular, mas ser substituído. Uma certa sensação de que, ao chegar e não deixar dúvidas que Mbappé era o líder, Xabi tomou logo um partido.
O grande rendimento de Mbappé tem sido uma das poucas notas positivas das últimas semanas
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Um momento fundamental decorreu a 26 de outubro, ainda o Real e Alonso viviam na lua de mel. No melhor resultado desde que o antigo médio pegou na equipa, o Barcelona foi derrotado (2-1) no grande clássico espanhol. Só que, como uma fuga de gás que se dá quando tudo é harmonia e concórdia, só se sabendo as suas consequências depois, algo se quebrou naquela tarde.
Aos 72′, Xabi substituiu Vini. O brasileiro não escondeu a irritação com a troca, questionando, à frente de todos, a autoridade do treinador. O clube não defendeu o técnico, que ficou isolado perante uma estrela, habitual posição de fragilidade no emblema onde, historicamente, os futebolistas mandam. Desde então, a situação não mais se endireitou.
O gabinete de crise
A derrota que deixou o madridismo à beira de um ataque de nervos foi o 2-0 sofrido, em casa, contra o Celta. A quatro pontos do Barcelona na classificação da La Liga, o título é mais do que possível, mas é a sensação de impotência que corrói o projeto Xabi.
Seguindo o famoso guião destes momentos de crise, Florentino Pérez já fez saber à imprensa mais próxima em que patamar estamos: o embate frente ao City (quarta-feira, 20h00, DAZN) é decisivo para a continuidade do basco. Esta informação veio reproduzida, na manhã seguinte a perder contra o Celta, na Marca, AS e El Mundo. A rota do costume.
O duelo contra os galegos “colocou tudo em causa”, escreve o AS. A imprensa destaca a má relação entre parte do balneário e o treinador, uma rotura que começou como rumor e agora parece evidência.
Também na sequência do jogo com o Celta, e igualmente com ecos na imprensa mais pró-Florentino, deu-se uma reunião de emergência da direção blanca. Fala-se em “gabinete de crise” até altas horas da madrugada, sendo nesse encontro que se colocou a receção ao City como grande teste para o futuro.
Da mudança ao conformismo
Durante uma década, o Real Madrid viveu sob as regras da dupla Ancelotti-Zidane. Foram eles, enquanto parelha técnica, que venceram a ansiada décima Liga dos Campeões, em 2014, foi Zizou a solo que conquistou três Champions de seguida, seria Carletto a solo a ganhar mais duas.
O francês e o italiano sempre foram vistos mais como gestores do que enquanto revolucionários táticos. Destacavam-se no que os espanhóis chamam de mano izquierda, um certo sentido comum para contentar os egos de um balneário único. Mas, de tempos a tempos, uma série de maus resultados leva a acreditar que é preciso mudar o perfil, que é necessária ordem, dinamismo, inovação, um ar mais moderno.
Na passada Liga dos Campeões, o Arsenal de Arteta arrasou o Real Madrid. Foi o sinal que era preciso para que Florentino apostasse por um ex-jogador que ganhara fama de técnico inovador na Alemanha. Xabi Alonso chegava para mexer na hierarquia, para deixar o seu ADN, para que a equipa fosse sua.
Os primeiros sinais foram claros. Logo no Mundial de Clubes a intenção era ter um coletivo que pressionasse mais, mais agressivo, sem o imobilismo de tempos recentes. Bellingham estava lesionado, o que facilitava ter um meio-campo que mordesse mais, a Vinícius rapidamente foi dada a mensagem de que era preciso nova atitude.
Xabi Alonso em Madrid: 27 jogos, 19 vitórias, quatro empates e quatro derrotas
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Este Real Madrid mais sintonizado com o que a elite da bola europeia realiza precisava, para funcionar, de uma soma de convicção do treinador, apoio dado pela direção e capacidade de compreensão por parte das estrelas. Nada disto se tem verificado: começando pelo terceiro fator, os jogadores foram rápidos em expressar-se contra Xabi. Adicionalmente, a direção tem sido muda a defendê-lo. E o campeão do mundo de 2010 foi abandonando a sua proposta à medida que chegaram as dificuldades.
Desde que Bellingham recuperou de lesão, o britânico não mais saiu do onze, realizando quase sempre encontros completos. Mastantuono desapareceu das opções, também condicionado por um problema físico, e até Güler, referência dos primeiros meses da época, se vê ofuscado pelos nomes mais consagrados, sendo habitualmente substituído.
Valverde, desde que se queixou de jogar a lateral, não mais foi lateral. Vinícius parece ter voltado a ser intocável, com o trio Vini-Jude-Mbappé a dar a ideia de não poder ser suplente ou substituído, como sucedia com Ancelotti.
Nem a incrível temporada de Mbappé, autor de 25 golos em 21 encontros, mitiga a crise. Xabi Alonso chegou para criar um projeto, mas parece diluir-se entre cedências e estatutos. Sem poder para ser Xabi Alonso, sem autoridade para fazer alterações, Xabi transforma-se num Ancelotti mais novo, mas sem a mestria do italiano em ser diplomata, um Carletto sem a arte de Carletto.
Num clube onde as estrelas mandam, a guerra civil pode estar quase a fazer uma vítima mortal.