O envio da nova versão do plano para Washington surge horas depois de Donald Trump Jr. ter afirmado que o pai, “a qualquer momento, pode saltar fora” do processo

“É das primeiras vezes que eu vejo, na história da diplomacia, a parte que está a ser derrotada a tentar impor um plano negocial. Nunca tinha visto tal coisa.” É desta forma que Tiago André Lopes, especialista em relações internacionais, reage ao plano de 20 pontos que será apresentado pela Ucrânia aos EUA.

Para o também comentador da CNN Portugal, estas movimentações levadas a cabo por Kiev “poderão levar à saída dos norte-americanos do processo negocial”. “A Ucrânia não está num momento de força militarmente, economicamente ou politicamente. Este é um momento frágil (…). É muito arriscado avançar com esta proposta. Não esquecer que [os norte-americanos] ao saírem da mediação diplomática, eventualmente, poderão sair do apoio militar. Podem deixar de querer vender equipamento e deixar de querer transferir equipamentos”, defende Tiago André Lopes, lembrando que “a Ucrânia poderá ficar diplomaticamente sozinha”.

O especialista em relações internacionais lembra ainda que Kiev “enfrenta por esta altura casos de corrupção que continuam a minar a credibilidade do governo e do parlamento ucraniano”, ao mesmo tempo que a Rússia “continua a avançar”. “Com estes indicadores, a Ucrânia considerar que tem legitimidade para ter uma iniciativa diplomática para anular o plano do mediador é peculiar”, defende.

As alterações ao plano apresentado em novembro pelos EUA, originalmente composto por 28 pontos, surgem depois da reunião de segunda-feira, em Londres, com vários líderes europeus, nomeadamente Emmanuel Macron, Keir Starmer e Friedrich Merz.

O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, o chanceler alemão, Friedrich Merz, e o presidente francês, Emmanuel Macron, conversam entre si ao saírem do número 10 de Downing Street, em Londres, a 8 de dezembro de 2025. EPA/TOLGA AKMEN/Lusa

Segundo o presidente ucraniano, o documento foi reduzido para 20 pontos após a remoção de “pontos obviamente antiucranianos”. 

Na atualização que será alegadamente entregue esta terça-feira, o major-general Agostinho Costa entende que Zelensky retirou “certamente aqueles pontos que são linhas vermelhas para a Ucrânia”. “A cedência de territórios é a primeira, a segunda é a neutralidade da Ucrânia, enquanto o terceiro ponto será o tamanho do exército”, defende, questionando “como é que a Ucrânia suporta um exército de 800 mil quando tem um défice de mais de 70 mil milhões”.

Para Agostinho Costa, a posição assumida por Zelensky em Londres significou, na prática, “dizer não ao plano americano”, sob influência europeia e de um “trio que abrange Macron, Merz e Starmer”. Na sua leitura, “o que temos é os EUA e a Europa em contraciclo, ambos a navegar sentidos mais opostos”.

“Em boa verdade, a guerra vai continuar. Acredito que este plano não vai fazer nada pela paz porque os russos não o aceitam. Aqui tem de haver o caminho do meio”, afirma, acrescentando que “estamos a assistir ao colapso da iniciativa norte-americana”, algo que, diz, poderá ser o gatilho para a saída dos EUA das negociações. “Os EUA têm aqui a oportunidade de encontrar uma saída airosa do conflito, como se nada tivesse a ver com eles, ficando o problema entregue à Europa. Isso representaria o fim do ciclo diplomático, passando a palavra novamente para o campo de batalha.”

Europa arrisca um “jogo perigoso”

Para Tiago André Lopes, a atuação europeia no atual impasse diplomático representa um risco estratégico significativo. “Todos os sinais que a Europa tem demonstrado preocupam. A Europa não está a perceber que está a jogar um jogo muito perigoso. Continua a colocar-se de fora e a não querer ser um mediador, ao mesmo tempo que não tem permitido que o único mediador existente por esta altura [EUA] faça essa mediação.”

O analista acredita que a União Europeia tem assumido uma postura que compromete o próprio processo negocial. “Coloca-se de um lado da história e acha que esse lado é que manda, que vai condicionar, e que vai decidir o que irá fazer. E isso é um grande problema.”

Segundo Tiago André Lopes, o maior risco é a ausência de alternativas credíveis, caso a Europa continue a bloquear o processo sem oferecer soluções concretas. “A Europa não tem uma alternativa. Se a Europa me dissesse: ‘vamos agarrar nos 28 pontos, e nos 20 pontos, e vamos fazer uma terceira contra-proposta’, é legítimo. Mas não é isso que temos visto.”

Corria o ano de 2023, quando Ucrânia apresentou o plano dos 12 pontos para acabar com a guerra que começara há apenas um ano. Um plano que, para Tiago André Lopes, poderá ser o espelho daquele apresentado por Zelensky, esta terça-feira, dois anos depois desse momento.

“Claramente, os ucranianos continuarão a recusar concessões territoriais e, além disso, a exigir concessões políticas, como por exemplo o aligeiramento das sanções. Ou seja, regressamos à ideia original de 2023: o plano dos 12 pontos de Zelensky, no qual a Ucrânia procurava impor a sua vontade política. O problema é que a realidade no terreno, neste momento, não lhes é favorável”, salienta.

O envio da nova versão do plano para Washington surge horas depois de Donald Trump Jr. ter afirmado que o pai, “a qualquer momento, pode saltar fora” do processo. “Acho que ele pode fazer isso. O que há de bom e único no meu pai é que não sabemos o que ele vai fazer. Ele é imprevisível”, afirmou a partir de Doha, no Catar, algo que pode ter deixado ucranianos e europeus em alerta.

Já no domingo, o próprio presidente norte-americano tinha afirmado estar “um pouco desapontado” com Zelensky, acusando o presidente ucraniano de não ter lido a proposta de 28 pontos e defendendo que “o seu povo a adora”. Nas mesmas declarações, Trump sugeriu que “a Rússia está de acordo”.

O problema da Constituição

Afastando a possibilidade de ceder qualquer que seja o território tomado pela Rússia, Volodymyr Zelensky tem-se escudado na constituição. “Não temos qualquer direito legal para o fazer, seja ao abrigo da lei ucraniana, da nossa Constituição, do direito internacional ou, para ser honesto, da lei moral”, defendeu nos últimos dias.

Uma tese que, para Tiago André Lopes, poderá cair por terra. “A Constituição ucraniana, de facto, não permite a transferência de território, aliás nenhuma permite, mas as Constituições são alteráveis. Todas elas têm mecanismos de alteração. Portanto, a ideia de que as Constituições de repente são uma espécie de lei de Moisés não faz muito sentido e não se coaduna com a realidade do terreno”, lembra o especialista em relações internacionais.

Tiago André Lopes sublinha ainda que “em nenhuma guerra as Constituições são usadas como um objetivo para não negociar ou para travar a negociação” mas antes pelo contrário. “Por vezes é onde se começam a fazer as concessões”.