É ocasião rara apanhar Mohamed Salah a falar com jornalistas. Tipo recatado, conta-se que o egípcio nem nutre muitos amigos próximos no balneário do Liverpool apesar de lá contar oito anos a ser decisivo. Avesso a entrevistas, o melhor jogador da Premier League na época passada, quis, na segunda-feira, libertar a frustração acumulada ao longo de uma semana. “Fiz tanto por este clube. Agora estou sentado no banco e não sei porquê”, afirmou, desolado após o terceiro jogo seguido em que não foi titular, sem freios a mostrar o seu desgosto: “Não entendo o porquê de isto me estar a acontecer.”

A intervenção de ‘Mo’ Salah no estádio do Leeds United, feita na zona mista onde hoje ainda maior raridade é um jogador parar, sem ser solicitado, e dizer o que pensa, durou quase oito minutos. Nas mais de mil palavras que disparou, a mira do egípcio não se poupou nos alvos: falou do treinador, Arne Slot, falou da forma dos companheiros de equipa, queixou-se de promessas incumpridas pelo clube e acusou-o de querer fazer dele um bode expiatório para os recentes resultados periclitantes. O Liverpool já exibia tiques de explodir cá fora, soluçante no campo. De repente, a volátil intervenção do provável melhor jogador do clube este século ameaça implodi-lo por dentro.

A primeira consequência da conversa do egípcio com os jornalistas foi imediata e confirmou que a sua ausência da equipa aumentará para quatro jogos, ao não ser convocado para o jogo desta terça-feira em Milão, onde o Liverpool vai defrontar o Inter na Liga dos Campeões. 

Alvo de 16 perguntas acerca da entrevista de Salah, a conferência de imprensa de antevisão ao jogo transformou-se, para Arne Slot, num exercício de esquiva de golpes. “Acredito firmemente que há sempre a possibilidade de o jogador regressar”, defendeu o homem obrigado a fortalecer a sua armadura desde o final de setembro, ao perder oito das 14 partidas feitas desde a primeira derrota sofrida esta época. Questionado sobre se o egípcio voltará vestir a camisola do Liverpool – e a própria sugestão de tal não acontecer revela a gravidade da situação -, o técnico adensou a incerteza: “Não faço ideia.”

A honestidade da sua resposta é credível dado o timing das declarações de Mohamed Salah, por certo nada ignorantes do calendário pessoal do jogador. Ao não viajar com a equipa para o encontro da Champions, o jogo contra o Brighton, do próximo sábado e em Anfield Road, será o derradeiro antes do egípcio se juntar à sua seleção para disputar a Taça das Nações Africanas (CAN). A prova arranca a 21 de dezembro e a final, caso a equipa da terra dos faraós lá chegue, será a 16 de janeiro, duas semanas antes do fecho da janela de transferências de inverno. Salah falar agora não terá sido inocente para a sua causa.

Mohamed Salah tem 250 golos e 113 assistências feitas pelo Liverpool

Alex Livesey – Danehouse

A entrevista de Salah

Neste tempo de apertado controlo de clubes e assessores, protetores de uma bolha de comunicação que fazem por controlar ao máximo, um futebolista falar assim, por iniciativa própria e sem filtro, e esparramar o que pensa na opinião pública, não podia ser um ato mais divergente. Como ‘Mo’ Salah o fez, os tiques a premeditação foram visíveis. “Ontem liguei à minha mãe”, contou o jogador. “Disse-lhes para virem ao jogo com o Brighton. Não importa se vou jogar ou não, mas vou desfrutar. Veremos o que acontece. Lá estarei para dizer adeus aos adeptos antes da CAN”, acrescentou o egípcio, revelando ao mundo o convite feito aos pais, que não é comum irem ver o filho a jogar.

Polvilhando esse anúncio com uma pitada de mistério – “não sei o que vai acontecer enquanto lá estiver” -, o terceiro melhor marcador da história do Liverpool, com 250 golos, apenas atrás das lendas Ian Rush e Roger Hunt, empunhou o seu estatuto no clube para adensar o queixume. “Não tenho de lutar todos os dias pela minha posição porque a mereci”, advogou, chutando para longe o cliché futebolístico de ninguém estar acima da equipa. “As pessoas dirão, ‘Ah, não és maior…’ Não sou mais do que ninguém, mas mereci a minha posição. Isto é futebol, é o que é.” Pareceu sugerir, pelo que já fez nos reds, ser diferente dos outros jogadores estar isento de perder a titularidade.

Mohamed Salah vinha de jogar de início em 53 encontros seguidos na Premier League, uma série prolongada durante 19 meses. Bastaram três seguidos como suplente para o termóstato de Mohamed Salah escaldar a sua paciência. “Para mim, isto não é aceitável. Não entendo. Penso que se isto acontecesse noutro lado, qualquer clube iria proteger o seu jogador”, criticou, ao munir-se de uma típica expressão do futebolês britânico: “Da forma como vejo as coisas, estão a atirar o ‘Mo’ para debaixo do autocarro.” E ao dizê-lo, pode dizer-se que Salah não se importou em fazer o mesmo com o seu treinador.

Futebol internacional

“Não há relação entre nós. Sempre foi muito boa, agora, de repente, não há relação”, desabafou o jogador. Até esta tríade de jogos a suplente, nunca o egípcio deixara de ser titular com Arne Slot, nem quando a prestação do atacante no campo, esta época, titubeou em linha com a equipa, 10ª classificada do campeonato inglês. Tem apenas cinco golos e três assistências, um abismal oposto aos 34 e 23 que registou na recordista temporada passada: nunca um jogador estivera envolvido em tantos golos na Premier League, onde foi ele quem mais remates (130) fez e oportunidades (86). Acabou a ser eleito pela liga, os adeptos, os jornalistas e os adversários como o melhor jogador da temporada.

A abrupta queda de forma do Liverpool é geral a quase todos os membros do plantel. O capitão Virgil Van Dijk é uma sombra do seu eu autoritário. O seu parceiro na defesa, Ibrahima Konaté, tem acumulado erros comprometedores. Florian Wirtz, a contratação mais cara da história do futebol britânico (quase €138 milhões), pouco influente tem sido. Salah acompanha a tendência. “Lamento que todos na equipa não estejam em forma, mas sou eu quem tem de se defender agora”, criticou. “Há apenas cinco meses estava a ganhar todos os prémios individuais, portanto, por que deveria a situação seguir esta direção? Já fiz tanto por este clube, especialmente na época passada, agora estou sentado no banco e não sei porquê”, lamentou.

Sem hesitar, ainda deixou no ar a acusação: “É muito claro que alguém quer que eu fique com toda a culpa.” Não especificou se o alvo está em Arne Slot, ou em outro dirigente dos reds. E queixou-se de o Liverpool incumprir com “muitas promessas” que lhe fez no verão. E acentuou a acusação: “Parece-me que alguém não me quer no clube.”

Mohamed Salah renovou contrato com o Liverpool, por dois anos, em abril de 2025. O jogador egípcio vai na oitava temporada no clube

Andrew Powell

Quando Salah falou, nunca foi inocente

Seja esta birra recebida como for, Salah é uma lenda do Liverpool. Emoldurado com Steven Gerrard, Ian Rush ou Kenny Dalglish no panteão das figuras do clube, o egípcio não se pode queixar de falta de mimo institucional. Ao receber 458 mil euros de salário semanal, a sua carteira ilustra isso mesmo, fazendo de ‘Mo’, por quatro vezes o melhor marcador da Premier League, um dos futebolistas mais bem pagos do mundo. 

O seu rendimento ao longo dos anos justificou a estima do clube, ao ponto de a direção do Liverpool, liderada pelo Fenway Sports Group, os seus donos norte-americanos, ter conferido ao “Egyptian King” um tratamento excecional na sua política de não estimular dependências na equipa com jogadores trintões. Foi assim que, aos 33 anos, o jogador apareceu em abril último sentado num trono banhado a ouro no meio do relvado em Anfield, lá fotografado para anunciar mais uma renovação do seu milionário contrato, até 2027. “Pensava que ia acabar a minha carreira aqui, mas isto não estava no plano”, disse o atacante, na sua lamúria.

Nas parcas intervenções públicas de Salah, as palavras do egípcio no Liverpool sempre mantiveram um certo modus operandi. Surgiram na raridade de jogador perder a sua aura de intocável, dando uma pista ou outro acerca do seu ego, ou, com outra frequência, nas ocasiões cíclicas em que se aproximou o fim do seu contrato. Em abril de 2024, soltou um “se falo, haverá fogo” quando Jürgen Klopp fez dele um suplente num jogo já no fecho da última temporada do alemão, um treinador com quem conquistou a Liga dos Campeões.

No arranque da época passada, a primeira com Arne Slot, em entrevista à Sky Sports e a Gary Neville, antigo jogador virado comentador, estimou em 10% a hipótese de ficar no Liverpool. Meses depois, disse estar “mais fora do que dentro” durante as negociações de contrato rumo à tal foto no trono, no meio de Anfield. No contacto avulso com jornalistas ao longo destes oito anos em Inglaterra, as palavras do egípcio foram sempre cirúrgicas no contexto que as rodeou. Este caso não será diferente. 

Em temporada de Mundial onde o Egito vai jogar, Mohamed Salah estará arreliado com a súbita perspetiva de o seu tempo de jogo minguar, mesmo que a amostra se resuma aos últimos três encontros. E se Arne Slot, antecipando a planeada ida do atacante à CAN e o facto de ficar sem ele durante, pelo menos, duas semanas, quis aprontar a equipa para jogar sem o canhoto? A colocação de Dominik Szoboszlai, um médio, à direita do ataque no lugar que Salah deu ares de crer ser seu por direito, pode ser um treinador a pensar no bem coletivo e a preparar o que aí vem. Ao reagir com o tom e o conteúdo que escolheu, ‘Mo’ dinamitou as hipóteses de a sua situação melhorar.

De pronto foram ressuscitados os rumores acerca de uma eventual transferência para a Arábia Saudita. E, de repente, um dos mais icónicos jogadores da história do Liverpool pode estar quase a despedir-se do clube.