Uma revisão publicada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) aponta que os alimentos ultraprocessados — aqueles submetidos a métodos mais agressivos de alteração do produto in natura, além da adição de substâncias de uso industrial — estão transformando a dieta infantil e criando um cenário de crise global de nutrição entre crianças e adolescentes. O documento reúne evidências sobre os impactos desse tipo de produto na saúde de jovens em todo o mundo.
O levantamento destaca que o consumo desses itens resulta, por exemplo, em problemas no desenvolvimento infantil, desequilíbrio nutricional e ligação direta com quadros como sobrepeso, obesidade e cáries. A análise também traz dados que relacionam os ultraprocessados a outras formas de desnutrição, como atraso no crescimento, anemia, maior risco de desenvolvimento de diabetes tipo 2 na vida adulta e possíveis prejuízos na saúde mental.
Participação dos ultraprocessados na alimentação infantil pode trazer os mais diversos prejuízos a crianças e adolescentes, aponta Unicef Foto: Juliaap/Adobe Stock
A publicação reúne análises de estudos conduzidos por instituições como a Universidade de São Paulo (USP), o Instituto Nacional de Saúde Pública do México, a Universidade de Sidney e a Universidade de Gana. O lançamento é um complemento à série de artigos sobre ultraprocessados da revista The Lancet e nomes como Carlos Monteiro — que criou o conceito de ultraprocessados — também contribuíram para a revisão.
De acordo com o Unicef, os alimentos ultraprocessados são formulados para gerar lucro, não nutrição. Como eles concentram quantidades expressivas de açúcar, gorduras, sal e aditivos (como emulsificantes e aromatizantes), são hiperpalatáveis e podem direcionar preferências alimentares desde o início da vida. Entre os integrantes do grupo estão bebidas lácteas, barrinhas de cereais, macarrão instantâneo, sucos em pó, nuggets de frango e bolachas e biscoitos.
Como fica a dieta
A nutricionista Mariana Del Bosco, membro do Departamento de Obesidade Infantil da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso), explica que os produtos ultraprocessados frequentemente substituem alimentos in natura ou minimamente processados, comprometendo a qualidade da alimentação como um todo.
“Dietas com alto teor de ultraprocessados são, em geral, pobres em fibras, vitaminas, minerais e compostos bioativos, ao mesmo tempo em que apresentam elevado teor de açúcares, gorduras, sódio e aditivos”, resume Mariana.
Ainda segundo a nutricionista, por se tratar de uma fase de crescimento acelerado, uma dieta com esse perfil, ou seja, deficiente em nutrientes essenciais, pode prejudicar o crescimento, a formação óssea, a resposta imunológica e até aumentar a incidência de alergias. Por outro lado, o excesso de ingredientes críticos contribui para condições como resistência à insulina (o que aumenta o risco de diabetes do tipo 2), dislipidemias e hipertensão arterial.
A pediatra Fabíola Suano, presidente do Departamento Científico de Nutrologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), reforça que a exposição precoce a esses alimentos condiciona o paladar da criança. “Assim como aprender a andar ou falar, a exposição a esse tipo de alimento desde muito cedo acaba levando ao desenvolvimento de uma preferência, e isso influencia os hábitos para toda a vida”, diz.
Para a especialista, outro problema é que não se sabe, em longo prazo, qual é o perfil de segurança dos aditivos utilizados nesses produtos, como emulsificantes, aromatizantes e conversantes — uma preocupação que não diz respeito apenas à relação com o ganho de peso, mas também com o surgimento de uma série de outras doenças. “O organismo da criança é imaturo”, destaca a médica.
O relatório da Unicef mostra ainda que regiões mais pobres, especialmente países de baixa e média renda, enfrentam um rápido aumento no consumo de ultraprocessados. Nessas áreas, onde a subnutrição ainda é comum, produtos baratos, disponíveis em qualquer comércio e fortemente divulgados acabam substituindo alimentos nutritivos, inclusive entre crianças muito pequenas.
O peso do marketing
Para o Unicef, a publicidade infantil é um dos principais e mais insidiosos responsáveis pelo aumento do consumo de ultraprocessados entre crianças e adolescentes, moldando seus ambientes alimentares de forma prejudicial.
A proposta da organização para o combate do marketing de alimentos ultraprocessados e bebidas não saudáveis é baseada em medidas regulatórias obrigatórias, abrangentes e coerentes, com o objetivo de proteger meninos e meninas de táticas exploradoras.
De acordo com Mariana, por ainda não terem pleno discernimento para identificar estratégias de persuasão, crianças e adolescentes acabam influenciados por propagandas coloridas, mascotes e brindes. “É importante que os pais reconheçam as estratégias típicas usadas pela indústria, como cores chamativas, personagens, brindes, slogans simples e embalagens atrativas. Também é fundamental identificar o marketing indireto, especialmente no ambiente digital, presente em vídeos, jogos e conteúdos patrocinados por influenciadores”, recomenda a nutricionista.