A pandemia de covid-19 trouxe à tona inúmeras dificuldades que os sistemas de saúde não estavam preparados para enfrentar. A falta de coordenação governamental1 retardou uma resposta rápida à pandemia, que já vinha se espalhando de forma letal em alguns países, como Brasil, Estados Unidos e grande parte da Europa, que não adotaram nenhuma medida efetiva de prevenção.
Quando estratégias de enfrentamento e prevenção se mostraram inevitáveis para frear o crescente número de pessoas contagiadas, e tentar diminuir a quantidade alarmante de mortes, tornou-se difícil discutir as questões que envolviam a natureza dessas medidas e as questões éticas e legais relacionadas. Porém, mais de 5 anos após a OMS – Organização Mundial de Saúde declarar a emergência sanitária de importância internacional – única categoria jurídica devidamente prevista e regulamentada àquela altura -, parece que nada aprendemos com tantas dificuldades, medos e mortes.
Quais foram as medidas de restrição de direitos adotadas compulsoriamente em diferentes cidades, estados e países? Qual foi sua efetividade? Como se deu sua implementação? Qual o seu impacto em termos de resultados para a proteção da saúde pública e para o respeito aos direitos individuais? O que significa o poder de polícia sanitária hoje?
A pandemia expôs a necessidade de que os sistemas de vigilância em saúde integrem novas tecnologias e ferramentas para a detecção precoce de ameaças – conhecidas e emergentes – à saúde da população2. Os instrumentos tecnológicos digitais passaram a ser rapidamente adotados na área da saúde pública, sem que houvesse discussão adequada sobre seus efeitos, como a substituição da decisão médica pela inteligência artificial ou o armazenamento de dados pessoais. Da mesma forma, permanecem em aberto os critérios para a adoção de medidas como distanciamento social, “lockdown”, uso de máscaras ou passaporte vacinal em uma nova pandemia. Esses são exemplos de medidas que envolvem restrição de direitos individuais e suscitam questões importantes no campo ético, legal e sanitário3, e afetam diretamente a economia4 e a saúde mental da população5. Tampouco se pode ignorar os recortes de raça, gênero, classe social, idade, condição social, região geográfica, condição econômica do país, situação de saúde preexistente, que cada medida escolhida envolve6 7.
Na realidade, o tema não passou despercebido da OMS8 9. O Regulamento Sanitário Internacional passou por uma revisão, pós-pandemia, e nesse ano foi aprovado um Tratado de Pandemia também no âmbito da organização. Contudo, são acordos internacionais firmados na medida do que foi possível, considerando que, passados anos do fim da pandemia, a importância e urgência do tema no cenário político global foi, progressivamente, reduzindo-se. O reposicionamento do governo estadunidense no campo da saúde global teve impacto significativo na dinâmica de forças, inclusive no que se refere ao financiamento às organizações multilaterais e a importantes programas estratégicos de auxílio à saúde em países de baixa renda.
Os grupos de trabalho que discutiram o conteúdo preliminar desses documentos na OMS não conseguiram enfrentar temas importantes, como a obrigatoriedade da adoção das medidas pelos países e a propriedade intelectual e transferência de tecnologia. Muitas previsões foram incluídas como sugestões, sem vinculação, e postergadas para um detalhamento futuro. Ainda assim, esse foi o acordo possível, e, considerando o cenário normativo que enfrentamos durante a pandemia de Covid-19, é melhor que hoje tenhamos esses documentos do que a situação anterior, em que não existia nenhum acordo internacional10. É digno de nota que esses acordos não foram desfavoráveis aos países do Sul Global por conta da articulação e resistência dos países africanos – ocupando um espaço na diplomacia internacional que o Brasil perdeu nos últimos anos.
Nesse campo do conhecimento sobre estratégias restritivas, está em desenvolvimento uma pesquisa inédita, fruto de uma parceria internacional entre a Escola Paulista de Medicina (Universidade Federal de São Paulo – Unifesp) e o Instituto de Higiene e Medicina Tropical (Universidade NOVA de Lisboa), que avaliará os resultados de estudos sobre a implementação de medidas compulsórias de restrição de direitos pela Vigilância em Saúde durante a pandemia de Covid-19, sistematizando o impacto dessas medidas em direitos individuais e nos resultados obtidos em termos de proteção da saúde pública11.
Trata-se de um primeiro passo para entender quais evidências temos, atualmente, em termos de medidas compulsórias, envolvendo o conflito entre saúde pública e direitos individuais, que podem ou não ser adotadas caso estejamos diante de uma nova pandemia – cenário que já se mostra bastante provável diante das emergências climáticas enfrentadas globalmente (e não por acaso, tema da campanha da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos em 2025).
_______
1 Downey, D., & Myers, W. (2020). Federalism, intergovernmental relationships, and emergency response: a comparison of Australia and the United States. The American Review of Public Administration, 50(6-7), 526-535. https://doi.org/10.1177/0275074020941696
2 Jia, P., Liu, S., & Yang, S. (2023). Innovations in Public Health Surveillance for Emerging Infections. Annual Review of Public Health, 44, 55-74. https://doi.org/10.1146/annurev-publhealth-051920-093141
3 Sekalala, S., Forman, L., Habibi, R., & Meier, B. M. (2020). Health and human rights are inextricably linked in the COVID-19 response. BMJ Global Health, 5(9), e003359. https://doi.org/10.1136/bmjgh-2020-003359
4 Oliu-Barton, M., Pradelski, B., Woloszko, N., Guetta-Jeanrenaud, L., Aghion, P., Artus, P., Fontanet, A., Martin, P. & Wolff, G. (2022). The effect of Covid certificates on vaccine uptake, health outcomes, and the economy. Nature Communications, 13(1). https://doi.org/10.1038/s41467-022-31394-1
5 COVID-19 Mental Disorders Collaborators (2021). Global prevalence and burden of depressive and anxiety disorders in 204 countries and territories in 2020 due to the COVID-19 pandemic. The Lancet, 398(10312), 1700-1712. https://doi.org/10.1016/s0140-6736(21)02143-7
6 Caron, R. M., Rooks, R., & Kandeel, M. (2024). Editorial: COVID-19 pandemic and the social determinants of health. Frontiers in Epidemiology, 4, 1351696. https://doi.org/10.3389/fepid.2024.1351696
7 Chen, J. T., & Krieger, N. (2020). Revealing the unequal burden of COVID-19 by income, race/ethnicity, and household composition: The case of Massachusetts. Health Affairs, 39(9), 1620-1628. https://doi.org/10.1097/PHH.0000000000001263
8 World Health Organization (2023). Future surveillance for epidemic and pandemic diseases: a 2023 perspective. Geneva: World Health Organization.
9 World Health Organization. (2022). 10 proposals to build a safer world together – Strengthening the global architecture for health emergency preparedness, response and resilience.
10 Correia, T., Buissonnière, M., & McKee, M. (2025), The Pandemic Agreement: What’s Next?. Int J Health Plann Mgmt., 2025; 00:1-4. https://doi.org/10.1002/hpm.70000
11 Vivas, M. D.; Correia, T.; Bragagnolo, L.; Da Silva, I. A.; Tureck, F.; Santos, R.; Kielmann, S.; Carmo, D.; Avarca, C., Silva, F.; Paes, M.; Tofani, L. F. N.; & Chioro, A. Right-restricting measures implemented by Public Health Surveillance services during the COVID-19 pandemic: a systematic review protocol. BMJ Open, 2025; 15:e096904. https://doi.org/10.1136/bmjopen-2024-096904