Kjeld, um estudante alto com cabelo e olhos castanhos, inscreveu-se para ser dador de esperma em 2007. O detalhe das características é importante, dado que é o que aparece no seu perfil de dador no Banco de Esperma Europeu (ESB), e o que fez centenas de mulheres escolhê-lo para avançar com a gravidez que tanto desejavam. Em mais de 15 anos, o esperma de Kjeld atravessou pelo menos 14 países da Europa e tornou-se “pai” de quase 200 crianças.

A primeira bandeira vermelha só surgiu anos mais tarde, em 2020, quando o ESB recebeu um alerta a indicar que uma criança — concebida com o esperma de Kjeld — havia sido diagnosticada com uma mutação do gene TP53, responsável pela supressão de tumores e que, inoperacional, aumenta substancialmente a probabilidade do portador desta alteração genética vir a desenvolver algum tipo de cancro no futuro. Imediatamente, o esperma foi para laboratório com o objetivo de o despistar como origem desta mutação.

Após uma análise inicial, não foi detetado qualquer problema com a amostra recolhida. A isto, acrescenta-se o facto de Kjeld nunca ter manifestado qualquer sintoma desta mutação, pelo que rapidamente o esperma voltou “ao mercado”. Mas três anos mais tarde, o mesmo alarme voltou a soar. Um outro descendente com uma mutação naquele gene problemático. Desta vez, uma nova ronda de análises ao esperma de “Kjeld” revelou aquilo que não tinha sido encontrado nem em 2020, nem em 2007 quando se inscreveu para ser dador: a mesma mutação.

Com esta confirmação, o esperma de Kjeld foi imediatamente “retirado das prateleiras” e o ESB foi obrigado a contactar todos os pais que recorreram a esta amostra para dar origem ao nascimento dos respetivos filhos. Seja na Dinamarca, na Bélgica, em Espanha ou na Grécia, várias foram as famílias afetadas pela não-deteção desta mutação. Nasceram pelo menos 197 crianças fruto da doação de Kjeld, pelo que todos foram convocados para fazer análises, na esperança de não vir a encontrar aquela mesma mutação.

Algumas destas crianças já só descobriram esta alteração genética com o diagnóstico de um tumor. Outras, já teriam morrido, de acordo com a bióloga Edwige Kasper, em declarações à DW (Deutsche Welle), que liderou a investigação ao caso do “dador 7069”, em coordenação com a Rede de Jornalismo de Investigação da EBU (sigla inglesa para a união europeia de estações públicas de radiodifusão). Os números definitivos de casos afetados ainda não são conhecidos, uma vez que a ESB não revelou todos os descendentes de Kjeld aos vários órgãos de comunicação que participaram na investigação. De acordo com a BBC, das 67 crianças já analisadas, 23 eram portadoras da mutação, 10 já tinham recebido o diagnóstico de cancro.

“Estamos profundamente comovidos com o caso e com o impacto que a rara mutação TP53 tem sobre várias famílias, crianças e o dador. Eles têm a nossa mais profunda solidariedade”, escreveu o ESB, quando confrontados com estas conclusões. Na mesma nota, citada pela DW, reforçam que são feitas análises a todos os dadores “em total conformidade com as práticas científicas reconhecidas e a legislação”. Contudo, admitem ter identificado “que os limites para o número de famílias para as quais um dador pode ser utilizador foram excedidos em alguns países”.

“Isto aconteceu, em parte, devido à desadequação dos relatórios das clínicas, aos sistemas poucos robustos e ao turismo de fertilidade”, lê-se ainda no comunicado.