Por exemplo, envolve Portugal desta maneira: o sítio em causa documenta parte da atividade de Álvaro de Carvalho Matoso, um português que escravizou tantas pessoas que se diz ter ganho uma condecoração por esse facto

O museu da escravatura em Angola confronta-nos com os horrores do tráfico humano – e homenageia os que lutaram contra ele

por Griffin Shea, CNN

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Nos arredores de Luanda, numa casa branca centenária situada numa colina, um pequeno museu documenta um dos maiores horrores da história da Humanidade. Luanda, a capital angolana, foi o epicentro do tráfico atlântico de escravos. Agora, o seu Museu Nacional da Escravatura está a trabalhar para se tornar um local onde os descendentes de escravos possam regressar — não só para aprenderem sobre a história, mas também para vasculharem arquivos que possam ajudar a encontrar os seus antepassados.

O Museu Nacional da Escravatura situa-se no local da antiga propriedade de Álvaro de Carvalho Matoso, um português que escravizou tantas pessoas que se diz ter ganho uma condecoração por esse facto.

Entre os anos 1400 e 1867, estima-se que 12,5 milhões de pessoas foram escravizadas em África e transportadas através do Atlântico. Os investigadores acreditam que quase metade — cerca de 45% — veio da região em torno da atual Angola.

Pelo menos 1,6 milhões de pessoas foram transportadas à força de Luanda, principalmente para o Brasil. Mas os primeiros escravos a chegarem às colónias americanas da Grã-Bretanha, em 1619, também vieram de Angola. Os registos reproduzidos nas paredes do museu mostram pessoas escravizadas enviadas não só para o que viria a ser os estados do Sul, mas também para lugares como Nova Iorque e Rhode Island.

Um punhado de museus da escravatura circunda a costa africana, do Senegal ao Gana, passando pela África do Sul e pela Tanzânia. Tal como a maioria dos outros, o museu de Luanda foi outrora uma prisão para africanos escravizados, situada num penhasco com vista para o mar — um ponto de não retorno concebido em torno de uma geografia imponente para impedir qualquer hipótese de fuga.

Instrumentos de opressão


Um caldeirão batismal no Museu Nacional da Escravatura: as pessoas eram baptizadas à força na capela antes de serem enviadas para o estrangeiro foto Dogukan Keskinkilic/Anadolu Agency/Getty Images

Atualmente, o lado do museu virado para o mar é tão austero como teria sido há séculos. O outro lado já não é uma propriedade colonial, mas um grande parque de estacionamento pavimentado para autocarros de turismo, com um mercado de artesanato e um heliporto para visitantes VIP.

Mas o que é particularmente chocante no museu de Luanda é o facto de parte dele estar instalado no que foi outrora uma capela católica na antiga propriedade de Álvaro de Carvalho Matoso. Estão expostas relíquias desse tempo, nomeadamente o crucifixo de madeira e uma pia batismal. A pia batismal foi um instrumento utilizado pelos colonizadores portugueses para retirar a identidade dos angolanos escravizados, batizando-os à força antes de os colocarem em navios para atravessarem o Atlântico.

“Eram baptizados aqui, na capela”, diz Marlene Ananias Rodrigues Pedro, chefe do Departamento de Investigação Científica do museu. “Era durante o batismo que os escravizados tinham os seus nomes alterados. Os seus nomes verdadeiros eram retirados e eram-lhes dados nomes de origem portuguesa.”

“A maior parte deles adoptou ‘Angola’ como apelido para designar a origem do povo escravizado”, conta Marlene Ananias Rodrigues Pedro. “Os portugueses não queriam que eles mantivessem a sua identidade, que mantivessem o seu nome pessoal.”

Antes de serem forçados a embarcar nos navios, os portugueses tentaram distorcer passagens bíblicas para justificar a escravatura e convencer os angolanos a aceitá-la, acrescenta Marlene Ananias Rodrigues Pedro.

Os métodos brutais de forçar as pessoas à escravatura estão expostos numa sala ao lado da capela: armas, grilhetas, correntes. Desenhos da época mostram esclavagistas a baterem nas palmas das mãos dos angolanos com pás espetadas com pregos. Outras imagens mostram mulheres brancas ricas a alimentar crianças negras com restos debaixo da mesa, como cães, com coleiras de metal à volta do pescoço. Angolanos adultos, possivelmente os seus pais, servem aos brancos a sua refeição em pratos de prata.

Se os espancamentos e a religião não fossem suficientes, o álcool era outra ferramenta para tentar forçar os angolanos à submissão. Dois alambiques de metal encontram-se na varanda com vista para o oceano.

“Também foi ideia do colonizador obrigar os escravizados a beber”, diz Marlene Ananias Rodrigues Pedro. Mantê-los bêbados, pensava-se, tornava-os mais fáceis de controlar e de embalar ombro a ombro nos porões de carga dos navios.

Resistência feroz


Os angolanos trocaram os produtos locais por armas de fogo durante a resistência foto Dogukan Keskinkilic/Anadolu Agency/Getty Images

Este museu faz mais do que mostrar os angolanos como vítimas. As exposições também documentam a longa e feroz resistência tanto à escravatura como ao colonialismo. As armas usadas pelos angolanos alinham-se numa sala, mostrando como usavam flechas envenenadas e trocavam produtos locais por armas de fogo para ripostar.

“Eles lutaram. E muito. A independência em África não foi entregue numa bandeja de prata. Houve resistência”, disse Marlene Ananias Rodrigues Pedro.

Esse espírito de resistência perdurou durante séculos, passando pelo tráfico de escravos e pela era colonial, com a Guerra da Independência de Angola contra os portugueses, que durou de 1961 a 1974. O país conquistou finalmente a sua independência em novembro de 1975.

Esta é parte da história que Marlene Ananias Rodrigues Pedro e o diretor do museu,  José António Fazenda, esperam que os visitantes levem consigo. E estão a trabalhar com investigadores nos Estados Unidos e no Brasil para tornar os registos dos arquivos de Angola acessíveis a quem os quiser encontrar.

Num edifício modesto no sopé da colina onde se situa o museu, José António Fazenda e  Marlene Ananias Rodrigues Pedro estão a trabalhar com o governo para criar uma versão digitalizada dos arquivos de Luanda.

“Queremos criar uma biblioteca funcional nesta sala”, diz José António Fazenda. “Estamos atualmente a trabalhar com um grupo de profissionais para preparar uma campanha de recolha de materiais para esta biblioteca. Este é o nosso sonho. Queremos que as pessoas que estão aqui e querem aprender mais tenham um sítio onde o possam fazer.”

Descobrir o passado


Em exposição no Museu Nacional da Escravatura: algemas usadas em pessoas escravizadas foto Dogukan Keskinkilic/Anadolu Agency/Getty Images

Embora os nomes africanos das pessoas escravizadas nunca tenham sido registados, a documentação indica para onde foram levadas e em que navios se encontravam. Com trabalho suficiente, podiam existir pistas sobre o local onde foram capturados. Escondida nas entrelinhas está uma história mais rica sobre como os angolanos resistiram.

Atualmente, estes registos estão guardados no Arquivo Nacional, no centro de Luanda, acessível apenas com autorização especial, em condições que não são as ideais.

A última vez em que  Marlene Ananias Rodrigues Pedro lá esteve, “saiu com os olhos vermelhos e constipada, devido ao frio que se fazia sentir”, conta José António Fazenda.

“A equipa financeira da universidade e do ministro não tem dinheiro suficiente para pagar e fazer tudo o que tem de ser feito. O departamento precisa de um orçamento que exceda o que o museu tem”, afirma José António Fazenda  .

É por isso que estão a trabalhar com investigadores americanos e brasileiros para reunir talentos e recursos e esperam angariar fundos de doadores privados para apoiar o seu trabalho.

“Queremos preservar esta coleção para as gerações futuras”, sublinha Marlene Ananias Rodrigues Pedro.