Após refletir sobre o trabalho doméstico e a desigualdade de classes em “Que horas ela volta?” (2015) e traçar uma crítica ao patriarcado em “O clube das mulheres de negócios” (2024), a diretora Anna Muylaert volta a realizar um cinema fincado no interesse em temas sociais em “A melhor mãe do mundo”, drama exibido no Festival de Berlim que chega nesta quinta (7) aos cinemas. O filme acompanha Gal (Shirley Cruz), uma mulher que trabalha como catadora de materiais recicláveis e que tenta escapar de um relacionamento abusivo com o companheiro. Ao fugir de casa, acompanhada pelos filhos, Rihanna (Rihanna Barbosa) e Benin (Benin Ayo), ela sai pelas ruas de São Paulo fingindo fazer parte de uma grande aventura, tentando tudo para disfarçar a dura realidade para as crianças.

— Estava procurando na minha cabeça uma história sobre uma mãe. Conversando com uma amiga, ela me falou sobre catadores de lixo que trabalhavam no Centro de São Paulo que levavam seus filhos nas carroças. Fiquei muito impactada com essa imagem — lembra a cineasta, de 61 anos, que se inspirou em uma experiência pessoal no desenvolvimento do roteiro. — Ao mesmo tempo, estava vivendo a saída de uma relação abusiva que foi muito chocante. Eu, uma mulher adulta, diretora de cinema conhecida, mãe de dois filhos, quando caiu a ficha e fui entendendo aonde eu tinha me permitido chegar, fiquei muito traumatizada e juntei essas duas coisas em uma história.

O tema da maternidade também interessou Shirley, de 49 anos, que havia tido a filha Mali, hoje com 3 anos, menos de um ano antes das filmagens da produção. Ela encarou o desafio de puxar uma carroça pelas ruas da capital paulista com muita determinação. Em vez de mandar um vídeo com o teste para o papel, a atriz carioca viajou a São Paulo por conta própria para fazer um teste presencial diante da diretora, que já conhecia da série “Filhos do carnaval” (2006) e do filme “O clube das mulheres de negócios”.

— Com muito respeito a todas as atrizes que testaram para a personagem, mas não fui para tentar o papel, eu fui para fazer a Gal e ponto final — lembra Shirley, que foi vítima de agressões de um ex-companheiro no passado. — É a personagem que pedi a Deus e aos meus orixás. Eu, uma mulher negra, mãe, com a experiência de uma relação abusiva, me considero uma sobrevivente de um possível feminicídio, sinto a urgência de fazer personagens que possam contribuir para que as mulheres deixem de morrer.

A atriz fala com carinho das catadoras que conheceu durante a preparação para o filme, mas não quer saber de minimizar a situação difícil em que vivem.

— Ter conhecido as catadoras foi um divisor de águas na minha vida. Fui lá para colocar a mão no lixo, para aprender a catar. Me deparei com mulheres incríveis, invisibilizadas, mas com muito orgulho daquela profissão. Elas não desistem e quando terminam de trabalhar, tomam banho e saem cheirosas, penteadas. A experiência me fortaleceu muito como mulher — conta Shirley. — Não podemos romantizar mulheres puxando carroça, em sua maioria negras, não tem nada de bonito, é quase uma escravidão. Mas não podemos esquecer que são seres humanos que conheci e vou guardar com carinho para sempre.

No momento mais ativo de sua carreira — ela acaba de filmar “Geni e o zepelim”, adaptação da canção de Chico Buarque, no Acre —, Anna revela que sua maior dificuldade em “A melhor mãe do mundo” foi encontrar o tom entre um filme sobre uma situação trágica de violência e miséria e uma obra com algum lirismo a partir da aventura infantil.

— O filme anda no fio da navalha entre miséria e lirismo. Essa personagem vai caminhando no meio de dois abismos. E não podíamos cair totalmente no lirismo nem totalmente na tragédia — diz a diretora.

Seu Jorge e Anna Muylaert nas filmagens de "A melhor mãe do mundo" — Foto: Divulgação/Aline Arruda Seu Jorge e Anna Muylaert nas filmagens de “A melhor mãe do mundo” — Foto: Divulgação/Aline Arruda

Para interpretar Leandro, o violento companheiro de Gal, Anna escolheu Seu Jorge. A diretora revela ter ficado impressionada com a dedicação e a profundidade do ator e cantor.

— Seu Jorge é um talento gigantesco, com uma cara e um olhar com grande profundidade. Ele gosta de estudar e entender profundamente o personagem — fala.

Shirley também é só elogios ao colega de cena, que conhece há mais de 20 anos, mas com quem só agora pôde contracenar lado a lado. Ela valoriza a compreensão do ator em “ceder seu corpo e seu talento para falar de um assunto tão duro”.

Com uma carreira consolidada como ator, com trabalhos marcantes em obras como “Cidade de Deus” (2002) e “Marighella” (2019), além da parceria internacional com Wes Anderson em “A vida marinha com Steve Zissou” (2004) e “Asteroid City” (2023), Seu Jorge comemora a oportunidade de fazer algo diferente em “A mulher mãe do mundo”: trabalhar com uma equipe majoritariamente feminina. Além de direção e roteiro de Anna Muylaert, o novo longa conta com mulheres na fotografia (Lílis Soares), na direção de arte (Maíra Mesquita e Juliana Ribeiro), no figurino (Nina Maria), na maquiagem (Simone Souza) e na edição de som (Miriam Biderman).

— Me senti honrado em fazer um filme em que as escolhas e decisões eram tomadas por mulheres. Não titubeei quando a Anna me convidou para fazer o filme. Vi que era algo que eu precisava fazer, para também aprender — fala Seu Jorge, de 55 anos. — Nunca tinha feito um personagem tão complexo e tão difícil. Foi um aprendizado. A gente se esmera para contar da melhor maneira essas histórias da vida.

Pai de três filhos, Seu Jorge se identifica com a mensagem do filme:

— Por mais caótica que seja a vida dessa mulher, ela faz de tudo para proteger os filhos. E essa é a luta de todo dia de muitos chefes de família.