A 21 de Novembro de 1975, o mais revolucionário dos juramentos aconteceu no quartel dos Regimento de Artilharia de Lisboa (RALIS), apelidado de “regimento do povo” (uma daquelas expressões bem batidas no PREC). De punho bem erguido e, como manda a revolução, “ao serviço da classe operária”, 170 recrutas fizeram o primeiro juramento naquele quartel depois do 25 de Abril, numa cerimónia muito diferente da habitual prática militar. Para dar legitimidade a todo o acto, também lá estava então Chefe de Estado-Maior do Exército, Carlos Fabião, mas não serviu de muito: o juramento “lesivo para a disciplina militar” foi tão polémico que foi anulado uns dias depois por Ramalho Eanes, o novo Chefe de Estado-Maior do Exército, já depois do 25 de Novembro.

Mas o que por lá se passou de tão grave? A ala revolucionária do Movimento das Forças Armadas estava a ultrapassar pela esquerda (e a grande velocidade) a ala reformista. Os soldados uniam-se às comissões de trabalhadores e de moradores — também elas já faziam presenças no juramento da bandeira — e havia, nos sectores mais moderados, o receio de uma revolução popular onde os militares mais à esquerda teriam um papel essencial — o famoso Red Threat in Portugal da revista Time.

Os discursos daquele dia podiam servir de preâmbulo do 25 de Novembro de 1975. O coronel Leal de Almeida, comandante do RALIS, dizia aos recrutas que era “fundamental o empenhamento de todos os militares”, pedindo que aqueles “que abandonaram as fábricas e os campos” não se separassem “do espírito de luta e consciência revolucionária de que vindes imbuídos”. Na prática, “a presença de representantes dos trabalhadores [no juramento da bandeira] traduz de uma forma inequívoca o trabalho que se tem desenvolvido”: os soldados iriam ser os pilares do exército revolucionário. Já Carlos Fabião, então Chefe de Estado-Maior do Exército, falava na necessidade “de muitos braços armados que garantam a segurança do processo [revolucionário], as conquistas alcançadas e, sobretudo, a possibilidade que a história ande para trás”.

A aliança Povo/MFA é consumada naquela cerimónia com a presença com a presença da coordenadora mista das comissões de moradores e trabalhadores da zona da cidade de Lisboa, onde se situava o quartel. Também ela teve a palavra, algo inédito, mas o discurso foi todo ao lado e falhou absolutamente as suas previsões. Ora vejamos: “A possibilidade que me foi concebida de vos falar, mostra que, não mais os soldados dos RALIS jurarão uma obediência cega a uma disciplina militarista apostada em usar as armas que o povo paga, não para o defender, mas para o oprimir.” Na realidade, não mais os soldados dos RALIS jurariam a bandeira sem cumprir a disciplina militar.

Transcrevo na íntegra o mais infame dos juramentos, tal suspiro final de uma corrente que acabou derrotada: “Nós, soldados, juramos ser fiéis à pátria e lutar pela sua liberdade e independência. Juramos estar sempre ao lado do povo, ao serviço da classe operária, dos camponeses e do povo trabalhador. Juramos lutar com todas as nossas capacidades com voluntária aceitação da disciplina revolucionária contra o fascismo, imperialismo e pela democracia e poder para o povo. Pela vitória da revolução socialista.”

Fora do quartel, o Diário de Lisboa destacava três coisas: segundo a intersindical e as comissões de trabalhadores de Lisboa, “só um governo de esquerda” podia “evitar uma guerra civil, o caos e uma anarquia”, tal vacina multipotente contra todas as maleitas. Já a direcção do Sindicato dos Jornalistas estava suspensa – “sabendo-se, como se sabe, que os corpos gerentes eram integrados por jornalistas afectos ou ao PS ou ao MRPP” — depois de uma votação à pressa num plenário de jornalistas. A culminar tudo isso, um grupo de alentejanos resolveu acampar em Belém para protestar contra o Governo, mas tinham um problema: não tinham onde cozinhar, uma prioridade para qualquer português que se preze. Lá o “poder popular” disponibilizou o refeitório da Companhia dos Transportes Marítimos, naquilo que é descrito pelos jornalistas desse jornal como uma “lição de solidariedade e exemplo de luta contras as tendências direitistas do VI Governo”, também ele chamado de “golpista”. Eram outros tempos — também no jornalismo — e o 25 de Novembro só chegaria na semana seguinte.