O facto de, em 1933, uma ideologia violenta, desumana e radical ter conseguido impor-se, através de eleições democráticas (ainda que condicionadas e manipuladas) numa nação europeia com elevados níveis de instrução e numerosos e inestimáveis contributos nos campos das ciências, da filosofia, das artes e das letras, e ter-se mantido no poder durante 12 anos, sem significativa contestação interna, mesmo quando a sorte da guerra se tornou adversa e as condições de vida se tornaram extremamente penosas, é um enigma que tem suscitado intermináveis discussões e variadas hipóteses explicativas. As reflexões sobre os factores e mecanismos que terão levado cidadãos alemães de natureza pacata e com mundividências e aspirações burguesas a apoiar o regime nazi, ou, pelo menos, a aceitarem-no docilmente, têm gerado livros suficientes para preencher muitas estantes, mas o assunto está longe de estar esgotado, como prova A village in the III Reich: How ordinary lives were transformed by the rise of fascism (2022), da escritora britânica Julia Boyd (com contributos de Angelika Patel), que a D. Quixote editou recentemente em português, com tradução de Isabel Amaral e o título Uma aldeia no III Reich: Como vidas vulgares foram transformadas pela ascensão do fascismo.

A capa de “Uma Aldeia no Terceiro Reich”, de Julia Boyd, na edição portuguesa da Dom Quixote

A história do nazismo tende a escolher uma perspectiva ampla e a dar particular relevância aos grandes centros urbanos, às figuras notáveis, às reviravoltas políticas e aos grandes embates bélicos, mas Boyd escolheu analisar o fenómeno a partir de um insignificante povoado rural numa região periférica da Alemanha: “Ao colocar uma aldeia sob o microscópio, este livro pretende contribuir […] para compreendermos por que razão os alemães reagiram a Hitler da forma como reagiram [e] como é que as suas atitudes em relação ao regime evoluíram” (pg. 27). No que respeita ao foco e à intenção, Uma aldeia no III Reich tem afinidades com a obra clássica de Milton Mayer, Eles pensavam que eram livres: Os alemães 1933-1945 (1955, They thought they were free: The Germans 1933-1945), publicada em 2025 pela Tinta-da-China. Mayer elegeu Marburg (referida no livro como “Kronenberg”), uma cidade universitária de 20.000 habitantes no estado de Hesse, e Boyd escolheu Oberstdorf, uma aldeia nos Alpes de Allgäu (Allgäuer Alpen), no sul da Baviera (talvez fosse mais rigoroso chamar-lhe vila, uma vez que a sua população residente rondava, na década de 1930, c.4000 habitantes, mas, uma vez que a edição portuguesa adoptou a designação “aldeia”, é esta que se emprega neste artigo).

A região dos Alpes de Allgäu, com Oberstdorf no centro

Porém, as abordagens de Mayer e Boyd foram completamente diferentes. O livro de Mayer assenta quase exclusivamente nas entrevistas que fez, em 1953, a dez habitantes de Marburg (todos homens adultos) que tinham vivido uma parte substancial da sua vida sob o III Reich e com os quais Mayer estabeleceu uma relação de proximidade, ou até mesmo de amizade (refere-se a eles, ao longo do livro, como “amigos”). Mayer considerou que os seus entrevistados eram “suficientemente diferentes entre si no que diz respeito ao meio social de origem, ao carácter, à inteligência e ao temperamento para, em conjunto, serem representativos de alguns milhões ou dezenas de milhões de alemães e parecidos o bastante para terem sido nazis”, mas uma das críticas mais correntes e pertinentes ao seu livro é precisamente a falta de representatividade da amostra – para começar, por não incluir uma única mulher.

Como o trabalho de Boyd começou oitenta anos depois da subida de Hitler ao poder, é natural que não tenha podido apoiar-se fortemente em testemunhos directos desse tempo. Em contrapartida, beneficiou de ter como ponto de partida um detalhado trabalho de recolha de informação: o quinto volume da história oficial de Oberstdorf, encomendado pelo município a Angelika Patel – descendente de uma das mais antigas famílias da aldeia – e que foi publicado em 2010 com o título Uma aldeia no espelho do seu tempo: Oberstdorf 1918-1952 (Ein Dorf im Spiegel seiner Zeit: Oberstdorf 1918-1952). Com a inestimável ajuda de Patel e de vários historiadores e arquivistas locais (no activo ou reformados), com entrevistas aos derradeiros sobreviventes e com minucioso trabalho de pesquisa em arquivos oficiais e particulares, notícias de jornal, actas, cartas e diários (alguns deles inéditos), Boyd criou uma detalhada tapeçaria, em que as histórias individuais dos habitantes da pacata aldeia alpina contra o tempestuoso pano de fundo da história da Alemanha e do mundo nas décadas de 1930 e 1940. Ainda que o período fulcral coberto por Uma aldeia no III Reich seja 1933-45, Boyd acaba por encaixar-se nas balizas cronológicas do livro de Patel – de 1918 ao início da década de 1950 – uma vez que o fenómeno do nazismo é indissociável da derrota alemã na I Guerra Mundial e dos anos conturbados da República de Weimar, e também porque, para a compreensão do nazismo, é indispensável saber como se comportaram os alemães após o colapso do III Reich, como reagiram à ocupação por forças estrangeiras, como reergueram um país em ruínas e como lidaram com um trecho sinistro do seu passado.

Num meio editorial onde abundam os livros sobre o desembarque da Normandia ou a Batalha de Stalingrad, Julia Boyd tem vindo a destacar-se por dar a conhecer a história da Alemanha nazi na perspectiva das pessoas comuns, pois em 2017 publicara Travellers in the Third Reich, realizado a partir das impressões registadas pelos estrangeiros que visitaram o país, sobretudo na década de 1930.

Vista da moderna Oberstdorf no Inverno

Uma aldeia no III Reich e Eles pensavam que eram livres são dois valiosos contributos para a compreensão no nazismo e da disponibilidade de mentes burguesas, ordeiras e civilizadas para se deixarem aliciar por ideologias totalitárias e sanguinárias e funcionam como complemento à escala microscópica de obras de perspectiva macroscópica, como a monumental trilogia de Richard Evans sobre o III Reich (publicada em Portugal pelas Edições 70): The coming of the Third Reich (2003, A ascensão do III Reich), que analisa como “os nazis destruíram a democracia e tomaram o poder na Alemanha”, The Third Reich in power (2005, O III Reich no poder), que mostra “como os nazis conquistaram o coração e o espírito de uma nação”, e The Third Reich at war (2008, O III Reich em guerra), que cobre o período da II Guerra Mundial.

Vista da moderna Oberstdorf no Verão

Uma aldeia no III Reich é complementada pelo apêndice “Os aldeões”, nove páginas de “micro-fichas” sobre as principais personagens da história de Oberstdorf sob o III Reich, mas este, ainda que seja útil, não substitui, de forma alguma, um índice remissivo ou, pelo menos, um índice onomástico, uma vez que pelas 340 páginas de texto desfilam, num turbilhão incessante, centenas de personagens, umas fugazes e outras recorrentes, umas famosas e outras anónimas.

O município de Oberstdorf tem particularidades que merecem ser destacadas:

1) Situa-se 160 km a sudeste de Munique, no maciço montanhoso dos Alpes de Allgäu e é uma das povoações alemãs situadas a maior altitude (813 metros).

2) Dadas as características climáticas e topográficas, o principal meio de subsistência do município foi, durante séculos, a agricultura, a pecuária e a produção de queijo.

3) As condições naturais e, em particular, a deslumbrante paisagem, fizeram com que Oberstdorf ganhasse fama como estância de ski e de montanhismo e como estância termal. O turismo começou a desenvolver-se no terceiro quartel do século XIX e ganhou impulso com a chegada a Oberstdorf do caminho-de-ferro, em 1888, e com a entrada em operação, no final da década de 1920, do teleférico de Nebelhorn (que liga Oberstdorf à estação de Seealpe, a 1280 metros de altitude. Em 2019, o município, que tem c.9000 habitantes, recebeu 480.000 visitantes e registou 2.6 milhões de dormidas.

4) O município de Oberstdorf, que faz fronteira com a Áustria, é o território mais a sul da Alemanha; 17 km a sul da aldeia de Oberstdorf, no Haldenwanger Eck, a 1931 metros de altitude, um marco fronteiriço assinala o ponto mais meridional da Alemanha.

Marco fronteiriço 147, em Haldenwanger Eck, fotografado do lado austríaco

A sua localização geográfica periférica, a topografia e o modo de vida explicam que Oberstdorf tenha, tradicionalmente, sigo governada por uma assembleia comunitária, de que faziam parte os proprietários das 353 “casas originais” da aldeia – e que eram também proprietários da maioria das pastagens e florestas do município: “através da sua assembleia, os homens do povo administravam a sua herança, como tinham feito durante gerações para o bem de toda a comunidade. Ferozmente independentes, estes pequenos agricultores, comerciantes e trabalhadores estavam determinados a que nenhum senhor feudal lhes dissesse o que fazer ou ditasse quem deveria herdar as suas terras e direitos históricos” (Boyd, pg. 34-35).

A partir de 1933, esta arreigada tradição de autogovernação entrou, inevitavelmente, em colisão com a natureza totalitária do III Reich, e os aldeões não tiveram outro remédio senão acatar as imposições do regime. Ainda assim, Oberstdorf gozou, durante algum tempo, de uma certa margem de liberdade, decorrente da sua condição periférica e da atmosfera de relativo cosmopolitismo decorrente de várias décadas de afluxo turístico.

Cartaz turístico, 1932

A forma como cidadãos e comunidades outrora pacíficas e tolerantes se deixaram seduzir pelo fascismo/nazismo e, por entusiasmo genuíno, conformismo, calculismo, medo ou “espírito de rebanho”, pactuaram durante anos com regimes agressivos e desumanos é um assunto que ganhou acrescida pertinência no século XXI com a ascensão ao poder, nalguns países europeus e nos EUA, de líderes populistas de extrema-direita, alguns dos quais têm vindo a tomar uma sucessão de medidas que visam o silenciamento da oposição e da imprensa livre, o controlo do ramo judicial e a perpetuação no poder.

O totalitarismo de extrema-direita da primeira metade do século XX causou destruição e sofrimento numa escala inaudita, pelo que poderia pensar-se que as massas teriam ficado “vacinadas” contra ele. Todavia, no século XXI, a memória histórica está a ser diluída pelas distracções, pela sobrecarga informativa e pela desinformação difundida pelos próceres e ideólogos da moderna extrema-direita, com o intuito de reescrever a história e tentar convencer as massas de que o nazi-fascismo não foi tão tenebroso como o pintam. Assim, é hoje possível ouvir, em órgãos de comunicação social de referência, respeitados historiadores afiançarem que “até 1939, a Alemanha nazi foi um país como qualquer outro” – ou seja, que a ordem política e social e as liberdades individuais não diferiam significativamente das que vigoravam à data na França, no Reino Unido ou na Dinamarca.

Esta cínica e despudorada operação de revisionismo histórico pode ser facilmente desmantelada pelo confronto com alguns dos passos dados por Hitler a partir do dia em que foi nomeado chanceler e que Boyd vai relatando ao longo do seu livro para mostrar que “a transição do caos político de Weimar para o totalitarismo nazi foi rápida e implacável” (pg. 83) e não poupou nenhum domínio da sociedade.

● As eleições federais de 5 de Março de 1933, deram a vitória ao NSDAP (Partido Nacional-Socialista), com 288 lugares no parlamento, o melhor resultado de sempre do partido. É importante referir que esta vitória, ainda que exprimindo um forte apoio popular, não foi limpa: por um lado, a campanha eleitoral nazi contara com um generoso apoio financeiro dos maiores empresários e banqueiros alemães, obtido numa célebre reunião que teve lugar a 20 de Fevereiro (ver O caminho para a II Guerra Mundial: Como o impensável se tornou inevitável). Por outro lado, o NSDAP recorreu à intimidação e à violência para constranger os seus opositores, tirando partido de deter o cargo de chanceler e vários lugares-chave da governação e de possuir uma numerosa, agressiva e bem organizada milícia armada. Ainda assim, as regras do sistema político não permitiam a um partido com 288 deputados – num total de 647 – governar sem o assentimento de outros partidos. Isto não constituiu obstáculo para Hitler, que, a 23 de Março, dois dias depois de ser reconduzido ao cargo de chanceler, conseguiu fazer aprovar a Lei de Habilitação (Ermächtigungsgesetz). Esta conferia-lhe “plenos poderes para governar a Alemanha sem o Reichstag e prender quem quisesse, durante o tempo que entendesse […] [e] deu aos nazis meios legais para eliminar rápida e brutalmente os seus adversários políticos” (pg. 84).


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Berlim, 23 de Março de 1933: Hitler discursa na sessão do Reichstag em que foi aprovada a Lei de Habilitação. A sessão decorreu na Krolloper, já que o edifício do Reichstag fora destruído recentemente pelo incêndio que serviu de pretexto para promulgar a Lei de Habilitação

● Um dia antes da promulgação da Lei de Habilitação, antevendo a necessidade de acolher a enorme quantidade de presos políticos que esta iria gerar, foi inaugurado o campo de concentração de Dachau, o primeiro de uma constelação maligna que, nos anos seguintes, alastraria pela Alemanha e pela Europa conquistada.

● A 31 de Março e 7 de Abril, foi promulgada a Lei da Equalização (Gleichsschaltungsgesetz), que estipulava que “todas as autoridades estatais e locais existentes, bem como todas as associações e sociedades […], deveriam ser dissolvidas e reformadas à imagem nazi” (pg. 85).

● A Lei da Equalização determinava também que “mesmo as reuniões cristãs tinham agora lugar sob uma cruz suástica [e que] cada evento terminava invariavelmente com a canção ‘Horst Wessel’ [um hino nazi] e o triplo ‘Heil”” (pg. 92).

● A 1 de Abril o Governo decretou um “boicote nacional às lojas judaicas”, que foi executado de acordo com um conjunto de “instruções extraordinariamente minuciosas [que] foram distribuídas por todo o país e publicadas em todos os jornais” (pg. 93).


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Berlim, 1 de Abril de 1933: Paramilitares das SA afixam numa loja pertencente a judeus um cartaz onde se lê “Alemães! Defendei-vos! Não compreis a judeus!”

● A 14 de Julho “foi aprovada uma lei que tornava o NSDAP o único partido político legal na Alemanha” (pg. 90).

● Foi posta em prática a “eliminação sistemática dos meios de comunicação hostis” (pg. 94).

● A 30 de Junho de 1934 teve lugar a Noite das Facas Longas, em que “altos responsáveis da SA, incluindo o seu líder, Ernst Röhm, e muitos outros vistos como uma ameaça à autoridade de Hitler, foram brutalmente mortos” (pg. 118).

● Com a morte do presidente Von Hindenburg, a 2 de Agosto de 1934, Hitler acumulou o cargo de presidente com o de chanceler, o que foi sancionado por um plebiscito, a 14 de Agosto, em que 89% dos votantes deram o seu assentimento.

● “Em Setembro de 1935, os nazis promulgaram as Leis de Nuremberga, que negavam aos judeus a cidadania, o voto e a posse de cargos públicos. […] Além disso, a lei sobre a ‘Protecção do Sangue e da Honra Alemães’ proibia o casamento e o sexo extraconjugal entre judeus e arianos” (pg. 119).

● Em 1936 tornou-se obrigatório que os rapazes entre os 10 e os 18 anos aderissem à Juventude Hitleriana. A obrigatoriedade foi reforçada em 1939: “qualquer rapaz que, de alguma forma, conseguisse evitar a entrada na organização verificaria mais tarde ser-lhe impossível conseguir um emprego ou uma vaga na universidade” (pg. 163-64).

Acampamento da Juventude Hitleriana, 1933

Inicialmente, a população de Oberstdorf, que tinha forte pendor conservador, não se deixou seduzir pelo nazismo, tal como aconteceu, de resto, com a Baviera em geral. Nas eleições de 1928 para o parlamento estadual da Baviera, a vitória coube ao BVP (Bayerische Volkspartei, Partido Popular Bávaro, democrata-cristão), o SPD (social-democrata) ficou em 2.º lugar e o NSDAP ficou-se por 6% dos votos.

Porém, nas eleições estaduais de Março de 1932 o NSDAP ficou a apenas dois mandatos de arrebatar o primeiro lugar ao BVP. O ímpeto ascensional do NSDAP foi confirmado nas eleições federais de 31 de Julho de 1932, em que foi o partido mais votado, com 37% dos votos, mas quebrou-se nas eleições de Novembro de 1932 – as derradeiras eleições justas e livres no país –, em que obteve 33% dos votos e perdeu 34 deputados no parlamento. Em Oberstdorf, contrariando a tendência nacional, o NSDAP obteve quase 40% dos votos nestas eleições e o resultado atingiu 52% nas eleições federais de 5 de Março de 1933 – em que, a nível nacional, o NSDAP teve 44% dos votos e 288 deputados, o que lhe abriu caminho à conquista do poder absoluto.

Resultados das eleições federais de 5 de Março de 1933

Algumas das leis e medidas repressivas promulgadas pelos nazis não tiveram repercussões imediatas na vida dos habitantes de Oberstdorf, mas a governação do município foi abruptamente alterada. A 21 de Abril de 1933, “o conselho municipal democraticamente eleito reuniu-se pela última vez” (pg. 87), sendo substituído por um conselho que, dando cumprimento à Lei de Equalização, tinha 2/3 de conselheiros nazis (10 num total de 15). Escreve Boyd que, “quando votaram em Hitler a 5 de Março [não ocorreu aos habitantes de Oberstdorf] que o governo forte que tanto desejavam resultaria na perda de controlo sobre os seus próprios assuntos. […] Três meses após as eleições, os novos senhores ocupavam todas as posições de liderança na aldeia” (pg. 95).

Há muitos pontos de contacto entre o antigo e o moderno populismo de extrema-direita: equiparam o parlamentarismo a uma “bandalheira” e a uma “pouca vergonha”; denunciam grupos de parasitas (quase sempre de etnias minoritárias) que vivem à custa do suor do cidadão cumpridor; prometem pôr ordem no caos e acabar com a corrupção; e advogam uma governação com mão firme. Porém, quando estas forças conseguem alcançar o poder, os cidadãos que as elegeram descobrem, tardiamente, que a “mão firme”, que julgavam ir disciplinar os “outros”, também se aplica a eles; que a corrupção não foi extinta, apenas passou a seguir outros circuitos e a ter outros beneficiários; e que a turbulência, a imprevisibilidade e os avanços e recuos da democracia são preferíveis à camisa-de-forças do totalitarismo.

Uma das armas mais poderosas a que os tiranos recorrem desde tempos imemoriais para suprimir a dissidência é a delação. Todos os regimes totalitários se empenham em dotar o aparelho de Estado de uma polícia política numerosa, bem equipada e com amplos poderes discricionários. Porém, sabem que esta força não é omnisciente, nem omnipresente, nem infalível, pelo que há também que convencer os cidadãos de que eles têm a obrigação de serem os olhos e ouvidos do Estado e de denunciarem as infracções à lei e os comportamentos desviantes de que têm conhecimento efectivo ou de que suspeitam. A delação, mesmo quando reporta factos verdadeiros, corrói a confiança que é imprescindível ao funcionamento saudável da sociedade e é ainda mais perversa quando é direccionada para lançar falsas acusações sobre pessoas com quem não se simpatiza, de quem se tem inveja ou receio (fundado ou não), com quem se teve ou tem um diferendo, ou cuja queda em desgraça poderá produzir benefícios materiais para o delator.

No capítulo “Guerra Total”, Boyd dedica várias páginas ao tema da delação: “Qualquer acusação, por mais trivial que fosse, era potencialmente perigosa. […] Criticar o regime, fazer comentários depreciativos sobre os seus líderes, espalhar boatos, envolver-se em mexericos maliciosos e contar anedotas sobre Hitler estavam entre as inúmeras infracções criminais que podiam levar a uma longa pena de prisão, a um campo de concentração ou até mesmo a uma execução” (pg. 241). Nalgumas regiões, o governo nazi criou tribunais especializados na recepção e investigação de denúncias, os Sondergerichte (Tribunais Especiais). Porém, apesar de a possibilidade permanente de se ser denunciado, justa ou injustamente, ter gerado em toda a Alemanha um “extraordinário clima de medo”, o número efectivo de denúncias em Oberstdorf foi relativamente baixo: “entre 1939 e 1945, apenas 19 residentes (de uma população que variou entre 4000 no início da guerra e aproximadamente 8000 no final) foram levados ao Tribunal Especial em Munique, tendo sete casos sido arquivados” (pg. 241).


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Quatro dos principais responsáveis por impregnar o sistema judicial alemão com a ideologia nacional-socialista: da esquerda para a direita, Roland Freisler, Franz Schlegerberger, Otto Georg Thierack e Curt Rothenberger

Porém, como Boyd não fornece informação sobre a prevalência da denúncia na Alemanha, ficamos sem saber se Oberstdorf foi um caso excepcional – quiçá por os seus habitantes possuírem um forte sentido de comunidade e se sentirem mais leais aos seus concidadãos do que ao Estado central – ou se não diferia do comportamento médio dos alemães. Independentemente do maior ou menor número de denúncias formais registadas na vigência do III Reich, é possível que o temor de se ser denunciado terá sido factor decisivo para que muitos alemães não ousassem culpar Hitler pelos seus infortúnios e anelassem pelo seu derrube. Acontece que a denúncia não necessita de ser praticada para ser um mecanismo repressivo eficaz: basta que o Estado a encoraje e forneça canais formais para o seu exercício para que se crie um clima de suspeição e medo e para que os cidadãos se sintam inibidos de exprimir ideias contrárias às do regime, de manifestar o seu desagrado com este, ou, pura e simplesmente, de se queixarem das agruras da vida.

Porém, como sublinha Milton Mayer em Eles pensavam que eram livres, apenas uma parte da população alemã se terá sentido constrangida e angustiada por esse clima: “Nenhum dos meus dez amigos [os entrevistados], à excepção de Hildebrandt, o criptodemocrata, sentiu desconfiança, suspeita ou medo […] junto daqueles com quem viveu e trabalhou, nenhum foi difamado ou destruído. O seu mundo era o mundo do nacional-socialismo. No seu seio, no seio da comunidade nazi, apenas conheceram a boa camaradagem e as preocupações corriqueiras da vida quotidiana. […] Não passavam, não viam, nem ouviam além dos limites dessa comunidade” (pg. 64).


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Berlim, 6 de Agosto de 1944: Roland Freisler, presidente do Tribunal do Povo (Volksgerichtshof), criado em 1934 para julgar crimes políticos, lê a sentença dos réus do Círculo de Kreisau, um grupo de dissidentes que se opunham ao regime nazi

Há também que considerar que os 12 anos de duração do III Reich talvez tenham sido insuficientes para que a grande massa da população transferisse o seu sentido de pertença do seu círculo de relacionamentos e da comunidade local para o Estado. A delação como instrumento repressivo conheceu o seu apogeu nos regimes comunistas da URSS, da China maoísta e da República Democrática Alemã, que duraram tempo suficiente para que houvesse gerações inteiras que não conheceram outra realidade que não fosse o totalitarismo e que foram doutrinadas desde tenra idade para colocar a fidelidade ao Estado acima de tudo, pelo que não hesitavam em denunciar os comportamentos “traiçoeiros” e “anti-sociais” dos seus familiares e amigos, incluindo progenitores e cônjuges.

É sabido que, no pós-II Guerra Mundial, as potências vencedoras levaram a julgamento os nazis que tivessem cometido, planeado ou ordenado crimes de guerra ou que tivessem desempenhado cargos de relevo na estrutura do III Reich, e tentaram identificar e remover os nazis de todas as posições relevantes na sociedade alemã – o célebre programa de “desnazificação”. Menos conhecido é o trabalho de “desnazificação” empreendido pela própria Alemanha, através dos Spruchkammern, tribunais civis que “estavam encarregados de afastar todos os nazis de cargos públicos e posições de responsabilidade no sector privado” (pg. 336). Boyd trata estes assuntos no último capítulo de Uma aldeia no III Reich, intitulado “O ajuste de contas”, que também trata da reacção dos alemães à derrota e a forma como avaliaram retrospectivamente os 12 anos em que o país foi liderado por Hitler.

12 de Maio de 1945: Na cidade alemã de Trier, procede-se à retirada da placa toponímica da “Rua Adolf Hitler”

Acontece que a maioria dos alemães não estavam interessados em “explorarem noções de racismo, credulidade, conformidade e culpa colectiva” (pg. 344) e, em vez de se entregarem a um doloroso exercício de rememoração e introspecção sobre o período mais tenebroso da sua história, preferiram esquecê-lo. Na verdade, para muitos nem havia nada de vergonhoso a esquecer, pois, como escreve Milton Mayer, “os homens pensam primeiro nas vidas que levam e nas coisas que vêem. […] As vidas dos meus […] amigos […] melhoraram e tornaram-se mais leves com o nacional-socialismo como eles o conheceram. E agora encaram-no […] como o melhor tempo das suas vidas; pois o que é a vida dos homens? Havia emprego e garantias de trabalho, colónias de férias para os filhos e a Juventude Hitleriana para os manter longe das ruas” (pg. 60).

Se esta reacção egocêntrica, cínica e materialista de quem viveu na Alemanha da primeira metade do século XX é compreensível, não pode dizer-se o mesmo da operação de branqueamento do nazismo que, paulatinamente, tem sido operada, nos anos mais recentes, pela extrema-direita populista alemã – e, em particular pela Alternative für Deutschland (AfD). Em 2018, Alexander Gauland, co-fundador da AfD e seu co-líder entre 2017 e 2019, defendeu que “se os britânicos podem sentir orgulho em Nelson e Churchill, também os alemães podem sentir-se orgulhosos dos feitos dos soldados alemães nas duas guerras mundiais” e considerou terminado o período de expiação, já que “nenhum outro povo europeu se expurgou tão completamente dos seus pecados como o alemão” (ver capítulo “A história, entre a culpa e o orgulho” em “Como serias tu em Auschwitz?”).


Olaf Kosinsky

Alexander Gauland no congresso federal da AfD em Colónia, em Abril de 2017, em que Alice Weidel (à esquerda) foi eleita para encabeçar, com Gauland, as listas de candidatos às eleições legislativas desse ano; Weidel é hoje co-líder da AfD, com Tino Chrupalla; Gauland é, desde 2019, secretário honorário do partido e é deputado no Bundestag

Não é apenas a AfD que assim pensa: em 2025, Elon Musk, o empresário multimilionário e megatroll da Internet que se arvorou em guru da extrema-direita global, interveio (via vídeo) num comício da campanha eleitoral da AfD admoestando a Alemanha por estar “demasiado focada na culpa relativa ao passado” e exortando-a a “deixar isso para trás. […] Os filhos não devem ser culpados pelos pecados dos pais ou dos bisavós. […] É bom ter orgulho na cultura alemã, nos valores alemães, e não deixar que estes se percam numa espécie de multiculturalismo que tudo dilui” (ver capítulo “Uma bifurcação na estrada da civilização” em Civilização ocidental: Quando o crepúsculo desce).

Para desfazer esta retórica sonsa bastaria ler o pungente capítulo 12 de Uma aldeia no III Reich, intitulado “Theodor Weissenberger in memoriam”, que faz uma breve biografia de um rapaz nascido em Oberstdorf em 1921 e que teve o infortúnio de ter nascido cego – ou, mais provavelmente, de ter cegado à nascença em resultado de um erro médico.

Theodor não tinha sangue judeu ou cigano, provinha de uma família prestigiada – o avô tinha sido presidente da câmara municipal de Oberstdorf – e desenvolveu-se normalmente do ponto de vista físico e mental e a sua boa natureza e o seu bom aproveitamento escolar indicavam que poderia levar uma vida independente quando concluísse os estudos. Todavia, algures em 1939, quando tinha 18 anos, o Estado alemão determinou que Theodor fosse transferido da escola para cegos de Pfaffenhausen para o Schloss Schweinspoint, uma instituição para deficientes. Nem Theodor nem os pais o poderiam adivinhar, mas o rapaz fora apanhado pela engrenagem mortífera da Aktion T4, o programa de eliminação de “vidas indignas de serem vividas”.

A racionalidade – chamemos-lhe assim – subjacente a este programa maciço de eutanásia involuntária foi exemplarmente explanada pelo Dr. Hermann Pfannmüller, psicólogo, neurologista, director do departamento de genética e higiene racial na autoridade local de saúde de Augsburg e, a partir de Novembro de 1939, assessor da Aktion T4. Escreveu Pfannmüller que, no contexto da guerra desencadeada pela Alemanha nazi, “é-me insuportável a ideia de que […] a flor da nossa juventude deva perder a sua vida na frente de batalha, para que os elementos anti-sociais débeis e irresponsáveis possam ter uma existência segura no asilo” (pg. 187).

Karl Brandt, oficial das SS e médico pessoal de Hitler (até perder influência para o Dr. Theodor Morell), foi nomeado em 1939 para liderar a Comissão para o Registo de Doenças Hereditárias e Congénitas, que viria a desempenhar papel relevante na Aktion T4

A 14 de Novembro de 1940, poucos dias depois de completar 19 anos, Theodor Weissenberger foi transportado para o hospital psiquiátrico de Günzburg e, em data incerta, daqui para o Schloss Grafenek, um dos seis centros de eutanásia da Aktion T4, onde os “elementos anti-sociais” eram eliminados por gaseamento com monóxido de carbono. Algumas semanas depois, os pais de Theodor receberam, em Oberstdorf, uma carta informando-os de que o filho morrera, “inesperadamente”, com “meningite”.

Viktor Brack, um oficial das SS, outro dos principais responsáveis pela Aktion T4

O regime nazi é, justamente, verberado pelos crimes de guerra cometidos contra outras nações (sobretudo na Europa de Leste e nos Balcãs), pelo extermínio em massa de etnias “inferiores” e pela repressão implacável de dissidentes e opositores políticos, mas é menos frequente recordar que se encarniçou também contra cidadãos alemães absolutamente inofensivos, cujo único “pecado” era não se encaixarem na utilitarista e desumana mundividência nazi. Ora, uma vez que estes actos 1) foram excepcionalmente graves, reiterados e amplamente disseminados, 2) não beneficiam de qualquer atenuante circunstancial e 3) não estão assim tão distantes no tempo, tal implica que nem tão cedo deixarão de ser um pesadíssimo lastro para a extrema-direita alemã (e austríaca) e impedem que os descendentes dos seus perpetradores possam libertar-se definitivamente da culpa e da vergonha. Ao contrário do que alguma extrema-direita tenta fazer crer, o Holocausto, o genocídio das etnias Roma e Sinti, a Aktion T4, os Einsatzgruppen, a morte pela fome ou pela violência de 3.3 milhões de prisioneiros soviéticos e as represálias brutais contra populações civis na Europa ocupada não foram “detalhes da história da II Guerra Mundial” (recuperando a apreciação que Jean-Marie Le Pen fez das câmaras de gás), mas antes elementos nucleares do nazismo e da história do século XX e um desafio, frontal e perturbador, aos conceitos de “civilização”, “cultura”, “progresso” e “humanidade”.