Os ‘fumes’ ou maus cheiros entram, supostamente, nos aviões pelo sistema de ar condicionado e deixam tripulantes e passageiros com irritação na garganta e nos olhos. Em Portugal e no mundo poucos querem dar a cara pelo problema. Certo é que muitos voos são obrigados a ser desviados para levar, muitas das vezes, tripulantes e passageiros para os hospitais. O comandante José Correia Guedes apela às universidades ligadas à aeronáutica para fazerem um estudo profundo sobre o problema para ajudar Portugal e o mundo.

É um dos grandes mistérios da aviação atual, e a TAP, como é óbvio, também não passa ao largo. Desde pelo menos 2019 que vários passageiros e tripulantes se queixam de ‘fumes-cheiros’ que os deixam indispostos, e com irritação nos olhos e na garganta. Já este ano, quando um voo da TAP aterrou em Florianópolis, no Brasil, dez pessoas foram parar ao hospital brasileiro por causa dos sintomas. Mas praticamente todas as semanas há mais um ou dois casos a acrescentar o role de queixas de tripulantes e passageiros. A 12 de março deste ano, os jornais noticiavam que “odores estranhos” obrigaram avião da TAP a aterrar de emergência no Porto, tendo oito pessoas ido parar ao hospital: dois pilotos e duas hospedeiras foram para o Hospital de S. João, e outros quatro passageiros foram transportados para o Hospital de Pedro Hispano.

Notícias idênticas a esta são quase semana sim, semana sim. Segundo o Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários, em 2024, houve 1.249 situações destas registadas na base de dados europeia.

A desmentir desde 2019

As primeiras notícias em Portugal sobre o problema dos odores, há quem os descreva com muitas semelhanças ao chulé, começaram em 2019 quando o SOL deu conta das queixas de tripulantes dos então novos aviões adquiridos pela TAP, com motor Neo. Nas notícias falava-se mesmo de pilotos que tiveram de aterrar com máscaras de oxigénio colocadas, além do mal-estar provocado a restantes tripulantes e passageiros. Desde essa data que a TAP, bem como as construtoras dos motores dos aviões e as próprias marcas desmentem qualquer tipo de problemas, apesar de reconhecerem os maus cheiros.

Em França já há mesmo associações para defenderem os tripulantes e passageiros, pois assume-se que um piloto já morreu, supostamente devido aos problemas no interior dos aviões, com os famosos ‘fumes’.

Como é uma indústria muito poderosa, poucos se atrevem a denunciar o problema e até o sindicato de pilotos tem pautado as suas intervenções públicas por muita parcimónia.

Já o comandante José Correia Guedes diz-se muito preocupado com o fenómeno e tem procurado dar uma ajuda aos seus colegas. “O problema existe e era muito importante que uma universidade portuguesa, principalmente aquelas que têm cursos de engenharia aeronáutica, que já são umas seis ou sete, pegassem no assunto, investigassem e chegassem a uma conclusão, prestariam um grande serviço, não só a Portugal, mas a todos os passageiros e tripulantes por esse mundo fora”.

O comandante reformado dá mais pormenores. “Quando se diz fumes, está-se a falar em cheiros, aromas. E quase todas as semanas há problemas com aviões por esse mundo fora. Tenho tentado ajudar porque há colegas meus, apesar de já não voar, que estão com problemas graves de saúde, alegadamente por exposição aos fumes, só que, a nível oficial, do ponto de vista da Medicina, quer os serviços médicos da TAP quer a Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO), ainda não chegaram a uma conclusão definitiva, uma relação causa e efeito, em relação a esses fumes, que estejam a provocar doenças graves. Os fumes provocam frequentemente irritação nos olhos e na garganta, que são sintomas passageiros, na maior parte dos casos. O problema mais sério coloca-se em relação aos tripulantes, porque estão expostos com mais frequência a esse tipo de episódios. E há casos de tripulantes que perderam a licença de voo, alegadamente por exposição a esse tipo de situações. Há casos em Portugal documentados, só que até ao momento não foi possível estabelecer uma relação causa-efeito definitiva. Mesmo nos casos mais graves, o caso de um piloto da TAP que tem uma doença muito grave, alegadamente por exposição a situações desse tipo, deixou de voar, pois perdeu a licença, mas ainda não se conseguiu provar que fosse pelos tais fumes. Neste momento estamos numa espécie de vazio, não é possível estabelecer ainda esse tipo de relação, agora que existem incidentes quase todas as semanas por esse mundo fora, é verdade, não é um exclusivo da TAP nem pouco mais ou menos”.

O sistema APU

Mas o problema não é um exclusivo de nenhum modelo, como se chegou a pensar ser do modelo Neo. “No caso do piloto que falei, a suspeita recai sobre a Unidade Auxiliar de Potência (APU), que é um gerador auxiliar que fornece corrente ao avião, e pressão hidráulica, quando o avião está no chão. Quando os motores estão parados, este motor secundário, pequenino, que não dá impulso, mas que fornece energia, provocará mal-estar em passageiros e tripulantes. Quando se liga o APU, ele introduz esses ‘fumes’ no ar condicionado. Tudo isso entra no avião através do sistema de ar condicionado”.

Mas a falta de provas é que complica ainda mais o mistério. “Não há documentação científica que comprove, sem margem para dúvidas, essa relação. O que se especula, é que esses fenómenos são produzidos por fugas de óleo do motor, ou seja que os motores estarão mal isolados, e as fugas de óleo entram no ar condicionado, porque o ar condicionado, na maior parte dos aviões, não na totalidade, é gerado através dos motores, ou seja, é ar que é retirado dos motores e depois passa por um processo de arrefecimento, de criação de humidade, mas esse ar vem dos motores. E quando vem dos motores, por vezes, é contaminado com óleo desses mesmos motores. E é aí que temos então o problema”.

Questionado se estivesse no ativo se aceitaria pilotar os novos aviões, o comandante José Correia Guedes não tem dúvidas: “Sem sombra de dúvida, até porque a percentagem de casos é ínfima, há estatísticas publicadas que deve andar à volta 0,1% de todos os voos. A taxa de incidência é muito baixa, baixíssima. Há milhões de voos por semana e só há um ou dois voos por semana que aterram de emergência por causa dos fumes. Daí não ser uma preocupação dominante na aviação. Acontecem episódios, é um facto; passageiros que sofrem irritação da garganta e dos olhos, é um facto; tripulantes com doenças graves, é um facto; só que não se sabe se causadas diretamente por exposição aos ‘fumes’. Suspeita-se que sim, mas até ao momento falta a prova definitiva. É um problema e eu até já sugeri – pois ando com alguma frequência pelas universidades portuguesas, a fazer palestras – que uma das universidades pegasse nisto e fizesse um estudo a sério, e uma investigação a sério, que iria ajudar não só os portugueses, mas os passageiros e tripulantes de todo o mundo, se conseguissem chegar a uma conclusão definitiva. É evidente que os fabricantes dos motores negam, como é óbvio, não se esperava outra coisa…”

Correia Guedes termina por dizer o que lhe parece óbvio: “Não tenho qualquer dúvida que o problema existe, e é sério, principalmente com os tripulantes, e, infelizmente, até ao momento ainda não foi possível provar uma relação causa-efeito, mas está a trabalhar-se nisso. Há casos em Portugal, e no resto do mundo, de tripulantes cuja saúde foi seriamente afetada, e suspeita-se, porque não há provas, que os problemas de saúde foram provocados por episódios deste tipo. Mas as manutenções é que podem pronunciar-se sobre os problemas técnicos”.