Da leitura deste romance biográfico fica a pergunta sobre a relação de Yourcenar com Grace: terá sido a «resolução mais acertada»? Para Cristina Carvalho, a resposta é: «No caso de Marguerite Yourcenar e tanto quanto se conhece sobre a sua vida, aparentemente, poderá ter sido uma decisão acertada, olhando para as dezenas de anos que viveram em conjunto e quase solitariamente, ela e Grace Frick, num sítio daqueles tão ermo, quase selvagem, longe de vizinhanças – que as havia, no verão e nas magníficas casas de férias de gente muito rica e durante todo o ano os aldeões naturais que lá nasciam e morriam. Sabemos que o mútuo entendimento era precioso e em várias vertentes, desde a alimentação confecionada quase sempre por ambas, cada uma com sua especialidade culinária, os passeios ao longo do lago, as conversas com os pássaros, o amor pelos animais e pelas árvores e pelas plantas até aos interesses muito intensos, muito sábios sobre literatura em geral e sobre as obras da escritora em particular. Grace foi a sua tradutora para inglês e desde sempre a ajudou, organizou e cultivou uma imensa e mútua sabedoria. Por tudo isto esta relação tão longa teve, aparentemente, uma luminosidade de vida harmoniosa e feliz.»
Seguindo-se Yourcenar a vários protagonistas desta série, pergunta-se a Cristina Carvalho o quão fácil ou difícil é a descoberta de novos biografáveis. Considera que «seria fácil no sentido em que gosto tanto e admiro várias pessoas que “conheço” em áreas diversas, como por exemplo na literatura, no cinema, na pintura, nas explorações científicas que vão desde as “excursões” à Lua como os mergulhos nas profundezas dos mares ou as escaladas aos píncaros das montanhas, como na culinária ou na fotografia… foram pessoas reais, já desaparecidas, cuja existência e obra me têm sido apresentadas ao longo da minha vida. Seria, pois, fácil escolher novos protagonistas para os meus romances biográficos, mas para isso e para continuar a escrever este género de literatura teria de ter agora menos vinte ou trinta anos. Estes livros obrigam a imensa e variada investigação, consulta, visitas, deslocações como todo e qualquer escrito sobre a vida de alguém, seja a clássica biografia, seja o romance biográfico, estilo este que se apresenta mais curto, muito mais condensado e com variações particulares sem nunca distorcer nem “inventar” as realidades dessas vidas».
No caso de Marguerite Yourcenar, a escritora confessa logo no início que optou por destacar a «infância e a tenra adolescência». Explica que o faz em «todos os livros deste género, porque o que me interessa destacar são esses períodos, ou seja, o despertar, o crescer, a evolução na idade e logo no conhecimento, o que se aprende e tudo o que um imaginário tenro virá a reter por toda a vida. Porque a nossa vida começou num dia e os inícios determinam e desenham toda uma futura idiossincrasia». Daí que se queira saber o quanto a obra da escritora belga está modelada pelo local, o Château, onde viveu até aos nove anos: “Essa primeira infância foi muito marcante e reveladora de um futuro e de um psiquismo pouco vulgar. Era uma criança solitária, cresceu num ambiente altamente propício a um desenvolvimento introspetivo e muito interiorizado. O seu maior amigo, nessa altura e pela vida fora, foi o seu pai que a apresentou a toda uma Natureza de maravilhamento, de comunicações invisíveis, de conversas convívios com os animais da quinta, com as árvores, com o tempo invisível que corre com os dias e com as noites. Com quem é que Marguerite conversava sem ser com o pai ou com os animais da sua preferência? Com ninguém. E muito cedo veio a conhecer a arte da leitura, da música, da pintura, dos teatros, essas artes que tudo ensinam a quem quiser dar-lhes atenção e reconhecimento. Foi o que aconteceu com ela quando saiu do Château com o seu pai, finalmente fora das garras, avisos e ralhos da “horrenda” avó Noémie.”
Há uma pergunta que foi repetida a Yourcenar ao longo da vida, se a circunstâncias do seu nascimento ser seguido da morte da mãe não a derrotaram para a vida. Segundo a autora “não”: “Ela própria afirmou e frisou bem, em variadas e extensas entrevistas, que o facto de não ter conhecido a mãe, nunca lhe foi nem importante nem impeditivo de nada. Fizeram essa pergunta inúmeras vezes e sempre respondeu – Como posso eu amar alguém que nunca conheci?”
A autora deste livro viajou até alguns locais importantes para a biografia de Yourcenar e, diz, «fiz o possível por conhecer e conheci física e geograficamente os seus cantos e domínios: o território francês da Flandres onde hoje, no Mont Noir, existem apenas uns pedregulhos originais provenientes do Château bombardeado e caído na Segunda Guerra Mundial; conheci bem o dito Mont Noir de inesquecível beleza, segredos e mistérios; a aldeia de Saint-Jans-Cappel, onde se situa o Museu Marguerite Yourcenar, a cidade de Bailleul e a cidade de Lille, território avoengo. No caso do museu, que fica situado na rua Marguerite Yourcenar, em Saint-Jans-Cappel na Flandres, é uma casa com três divisões e um corredor de entrada guarnecido, nas paredes de um lado e do outro, de fotografias variadas. Depois, as duas maiores divisões têm estantes com os seus livros e outros; nas paredes, inúmeras fotografias dela própria só e com seu pai, desde a infância até aos seus intensos amores e paixões como, por exemplo e serão somente alguns, Grace Frick, André Fraigneau – aquele que ela tinha amado mais do que a Deus, dizia, – de Lucy Kyriakus e várias fotografias de Jerry Wilson, o seu amante americano 45 anos mais novo do que ela. Na terceira divisão há fotografias, também nas paredes, do dia da sua eleição para a Academia de Letras Francesa, em 1980. É um pequeno museu, mas revela certos pormenores que me ajudaram a compreender algumas particularidades interessantes da vida desta personagem e seus relacionamentos.»
FABULÁRIO. Além deste romance biográfico, Cristina Carvalho publicou recentemente um livro, também, para o leitor mais jovem. Trata-se de Fabulário ou o pequeno circo do mundo, recheado de personagens impossíveis e insólitas: “Não pretende ser nem um conto, nem uma novela, nem um romance, pretende antes apresentar um mundo de fantasia às vezes enlouquecida, às vezes tão realmente séria e compenetrada que dará vontade de rir e quem sabe, vontade de chorar.” Pelo Fabulário desfilam porcos, Internet, Verne, Macondo, ou seja, um desnorte de personagens e lugares e, diz a autora, «um retrato do mundo e das suas personagens inacreditáveis, bondosos e enlouquecidos; um mundo dito e descrito por alguém, eu, que como toda a gente, nada conhece. Porque, ao contrário do que se julga, nada se conhece e quem julgar conhecer está, redondamente, enganado. Quem fui, quem sou, quem serei, eu, tu ele, nós, vós, eles, ninguém sabe. As aguarelas magníficas, secretas, naquele desenhar do mestre José Manuel Castanheira são de tal modo inequívocas e sinceras que só por elas, pelas aguarelas-ilustrações vale a pena conhecer este livro.»