Qual é o estado psicológico, seu e o dos seus colegas, que todos os dias lidam com situações como esta que acaba de descrever? Obviamente que não podemos também esquecer esses profissionais.
Não sei se não podemos, se tivermos só um minuto ou trinta segundos ou dez linhas para falar sobre Gaza, acho que não devemos falar sobre os trabalhadores internacionais, a não ser que para dizer que é preciso entrar mais e mais ajuda e mais bens necessários para ajudar esses trabalhadores. Porque os trabalhadores internacionais, como eu disse, conseguem sair, se não morrerem. Outra coisa importante a dizer é que já foram mortos os trabalhadores internacionais da World Central Kitchen, por exemplo. Conseguem sair, claro que às vezes não podemos sair na data que queremos, temos de ficar aqui por questões de segurança, por novos ataques, etc. Mas se puder escolher para onde aponto o holofote será sempre para a população civil.

Há pouco contou que improvisam um cinema ao ar livre. Que outras técnicas ou distrações têm para que exista alguma normalidade na vida destas crianças.
Tocou aí numa palavra muito importante. Realmente um dos objetivos no trabalho com crianças, sobretudo hospitalizadas, é criar algum tipo de rotina normal. Como é que conseguimos? Por acaso, nós num dos hospitais temos um músico e uns palhaços que vão ao hospital. Aqui em Gaza City temos uma storyteller, uma contadora de histórias que vem cá também. É claro que nós incluímos um objetivo terapêutico. Por exemplo, a storyteller no outro dia estava a falar de um boneco que tinha medo das ligaduras na mudança de pensos. Já estamos a trabalhar a ansiedade das crianças em relação a isto. Temos grupos de cuidadores.

Temos períodos de brincadeira não estruturados, só de X a X vamos brincar. Estamos a implementar grupos também, ou um período de aprendizagem, tentando envolver os cuidadores ao máximo, que as crianças aprendam alguma coisa. Mas depois temos intervenção clínica também.

Por exemplo, há pouco estava a falar de uma rapariga adolescente toda queimada. Ela faz parte de um grupo de intervenção para tentar reduzir a sintomatologia traumática, em que nós através de intervenção psicológica, tentamos reduzir os níveis de sintomatologia. Agora, é tudo feito, por exemplo, nesse grupo que deveria ser num contexto seguro e confidencial… Não há espaço, portanto é feito assim na parte exterior do hospital, em vez de ser feito numa zona segura, que é isso que caracteriza a intervenção no trauma. Tu passaste por algo traumático e horrível, mas agora estás seguro, nós vamos iniciar a intervenção psicológica. Isso não acontece aqui, tu nunca estás seguro aqui.

Este grupo é feito cá fora no hospital e elas vão vendo pessoas amputadas a passar em macas, quando a própria imagem traumática que elas têm é composta por isso. Numa das técnicas usadas nesse grupo, a que nós chamamos manipulação da imagem, a pessoa vê a imagem traumática e depois tentamos manipulá-la, pô-la mais distante ou com menos força, ou tirar-lhe a cor. E uma delas disse-nos: “Eu não consigo tirar a cor, só vejo vermelho”.

É possível que estas crianças possam vir a ter um sentimento de vingança ou raiva, tendo em conta que cresceram e nasceram muitas delas neste contexto? O vosso trabalho também é apaziguar um pouco esse sentimento?
Eu acho que as pessoas têm a sensação que as pessoas que estão aqui, ou as crianças, vão ganhando uma sensação de raiva contra, por exemplo, os israelitas. Nós nunca verificamos isso. Pode haver irritação e agressividade, certo? Mas não é dirigida a nada, nem a ninguém em particular. Sob um ponto de vista psicológico, não é causal que uma pessoa traumatizada vá ser uma pessoa violenta no futuro, de todo. Isto tem outras variáveis socio-demográficas. Sabemos que violência pode gerar violência se não for garantida justiça, igualdade, se as pessoas não forem invalidadas, etc. Até às vezes acontece o contrário. As pessoas sentem-se culpadas, às vezes as crianças sentem-se culpadas, acham que é Deus que está a castigá-las a enviar estas bombas do céu.

Sabe de alguém dos Médicos Sem Fronteiras ou de outra organização que tenha prestado cuidados de saúde a elementos do Hamas?
Não sabemos. Os hospitais, como todos os hospitais do mundo, recebem qualquer pessoa. Não há pessoas armadas dentro dos nossos hospitais, nem nós andamos com armas. Mas trabalho humanitário é neutro. Nós podemos estar a fazer este trabalho em Israel. Eu fiz na Ucrânia, poderia estar a fazer na Rússia. E não custa nada, porque no cara-a-cara, ser neutro é fácil. É isso que nos falta às vezes quando estamos aí. É que não há o cara-a-cara. Há uma distância, há uma narrativa entre o que nós sentimos e a forma como percecionamos a situação. Há uma lente que nos põe cá. Mas no terreno e em frente à pessoa que está a sofrer, é muito fácil. Ela é uma pessoa que está a sofrer.

Quando passa a fronteira, acredito que seja um ponto de tensão grande, nos pontos de controlo israelitas ou palestinianos. Já se sentiu ameaçado? Já teve medo em alguma situação concreta? Ou já se sentiu coagido em alguma situação desde que aí está, seja por Israel ou pelo Hamas?
Sim, é muito limitado o que nós podemos trazer pela fronteira, como estava a dizer. Mesmo nós é muito apertado. Alimentos ou aqueles vapes para fumar, ou tabaco, ou telemóveis. Que nós usamos sobretudo para tentar dar ao nosso staff alguma coisa, porque não entra nada, não é? Tentar dar aos nossos colegas, mas todas as minhas malas foram confiscadas quando eu entrei desta vez, por exemplo. Portanto, isso é extremamente dificultado. Nós temos muita dificuldade em fazer entrar medicação, é outro exemplo. Coisas básicas como peças para os geradores funcionarem, para a água continuar a existir no hospital e a luz também. Óleo de motor, essas coisas. Temos camiões na fronteira que precisam de entrar para garantir as nossas atividades e que não estão a entrar. E em relação à proteção de segurança, sim, nota-se o risco. Até pelos bombardeamentos, quando a casa treme, ou quando o hospital treme. Ou agora recentemente, quando os pára-quedas caem. Até agora não aconteceu, mas se alguma dessa comida cai dentro do hospital, vai ser um risco de segurança para toda a gente. Toda a gente vai mandar para dentro do hospital, não é? Já para não dizer que pode cair em cima de alguém e matar alguém. Portanto, os pontos de ameaça são múltiplos.

Esse controlo das malas confiscadas foi feito pelo exército israelita?
Sim.

Tem havido muita desinformação sobre Gaza. O que é que pode ser confundível com a verdade ou com mentira? Na última semana saíram várias imagens, publicadas pelas principais agências de notícias, de crianças subnutridas, notícias de crianças a morrer à fome. E aí, o embaixador de Israel em Portugal veio dizer em várias entrevistas que era uma estratégia de propaganda do Hamas e que as crianças não estavam a morrer à fome, que não existe fome em Gaza. Que evidências tem de que existe de facto fome em Gaza?
Há fome em Gaza. Há crianças subnutridas. Há crianças no hospital por causa disso. Não há comida no mercado. Os nossos colegas estão todos muito mais magros, todos lentificados, até hipoglicémicos. Nós estamos a dar-lhes um reforço de mel, para subir a glicemia. Nós temos de ter cuidado com a comida que comemos para não ser à frente deles, para não os desrespeitar. Nós temos menos acesso à comida, os trabalhadores internacionais têm muito menos acesso à comida. A comida que damos nos nossos hospitais é muito menos e é insuficiente. Portanto: Há. Fome. Em. Gaza.

Alguma vez viu ajuda médica ou alimentar impedida de entrar por razões políticas ou militares?
Ajuda médica não entra. Estão camiões e camiões na fronteira com medicação essencial, com bens necessários ou material necessário para as nossas atividades, como óleos de motor, geradores, filtros para os respiradores, etc. Está tudo na fronteira. Não é permitida a sua entrada.

Esse bloqueio é feito por quem? Israel?
Exatamente. As autoridades israelitas não permitem a entrada destes bens dentro de Gaza. De comida, de bens médicos, de medicação, necessidades básicas.