A Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc), integrante da Organização Mundial da Saúde (OMS), classificou recentemente a hepatite D como cancerígena. Com isso, a doença se une às hepatites B e C como causa do carcinoma hepatocelular, tipo mais comum de câncer de fígado.
De acordo com a OMS, esses três tipos de hepatite podem provocar uma infecção crônica que aumenta também os riscos de cirrose e falência hepática. Em todo o mundo, mais de 300 milhões de pessoas estão infectadas com essas hepatites virais, que causam cerca de 1,3 milhão de mortes por ano.
Hepatites B, C e D aumentam os riscos de cirrose, falência hepática e câncer de fígado, e causam cerca de 1,3 milhão de mortes por ano Foto: Cozine/Adobe Stock
“A cada 30 segundos, alguém morre de uma doença hepática grave relacionada à hepatite ou de câncer de fígado. No entanto, temos as ferramentas para parar a hepatite”, diz Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, em nota divulgada à imprensa.
No comunicado, a OMS faz um apelo para que governos e parceiros unam esforços para eliminar a hepatite viral como uma ameaça à saúde pública.
Hepatite D
A hepatite D, também chamada de Delta, é causada pelo vírus HDV, um invasor que depende da presença da infecção pelo vírus HBV (hepatite B) para se instalar no organismo.
De acordo com o Ministério da Saúde, existem duas formas de infecção pelo HDV. A primeira é a coinfecção, quando a pessoa é infectada pelos tipos B e D simultaneamente. A segunda é a superinfecção do HDV, quando o paciente tem histórico de infecção por hepatite B e posteriormente adquire hepatite D.
Segundo a OMS, a hepatite D está associada a um risco duas a seis vezes maior de câncer de fígado do que a hepatite B isoladamente.
Transmissão
A transmissão, diz o ministério, ocorre da mesma forma que a hepatite B:
- Por relações sexuais sem preservativo com uma pessoa infectada;
- Da mãe infectada para o filho durante a gestação ou o parto;
- Pelo compartilhamento de material para uso de drogas, como agulhas e cachimbos;
- Pelo compartilhamento de lâminas de barbear e depilar, escovas de dente, alicates de unha ou outros objetos que furam ou cortam;
- Na confecção de tatuagem e colocação de piercings, procedimentos odontológicos ou cirúrgicos sem os devidos cuidados com as normas de biossegurança.
Efeitos do vírus no organismo
O principal efeito da presença do vírus HDV é a inflamação crônica do fígado, evidência considerada “forte” quando se trata das características-chave de carcinógenos. Em pacientes coinfectados, o quadro é ainda mais exacerbado.
“Essa inflamação mais intensa leva a maior fibrose, mais cirrose e maior risco de câncer”, afirma a presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), Angélica Nogueira.
A oncologista explica que a cirrose também é um grande fator de risco para o câncer de fígado. Por isso, pacientes com cirrose ou hepatites crônicas devem ser monitorados regularmente, realizando a cada três meses exames de ultrassom e de alfa-fetoproteína, proteína que aumenta seus índices no fígado em caso de tumor.
“Esse rastreio permite uma detecção precoce e aumenta as chances de uma cirurgia curativa, por exemplo”, comenta Angélica.
Além da ressecção do fígado para a retirada do tumor, outra forma de tratamento pode ser a ablação por radiofrequência, que utiliza ondas de alta energia para a destruição de tumores, sem precisar retirá-los. Também podem ser consideradas opções como tratamento medicamentoso com drogas-alvo ou transplante do órgão.
Subnotificação
A decisão da Iarc foi baseada nas evidências de 15 estudos que indicaram “uma associação positiva, consistente e forte” entre a infecção por HDV e o aumento do risco do carcinoma hepatocelular. Esse risco também foi apontado em pesquisas que “consideraram potenciais fatores de confusão”, como infecção por HIV ou consumo de álcool.
A conclusão da agência da OMS foi publicada na revista The Lancet Oncology. Segundo o estudo, cerca de 0,1% a 1% da população mundial possui hepatite D. Entre quem possui o vírus HBV, a taxa de infecção pelo HDV é de 1% a 10%.
No Brasil, 169 pessoas contraíram o vírus HDV em 2024, segundo os dados do último Boletim Epidemiológico de Hepatites Virais. No entanto, o número de casos deve ser maior, devido à subnotificação.
Fabiana Siroma Callegaro, infectologista do Instituto Emílio Ribas e do Hospital Sírio-Libanês, explica que a hepatite D é marginalizada por estar restrita a algumas regiões do mundo. “Muitas vezes, (o profissional de saúde) se esquece de fazer o diagnóstico em pessoas que vêm com diagnóstico de hepatite B dessas localidades”, afirma.
No Brasil, 123 dos 169 casos foram registrados na região Norte, representando mais de 72% do total. O Estado de Rondônia lidera o número de diagnósticos, com 56 no último ano, seguido do Amazonas, com 52.
Fabiana ressalta que a infecção pelo HDV pode ocorrer mesmo nos pacientes em que os sintomas da hepatite B estejam controlados. Nesses casos, a infecção pelo novo vírus faz ressurgirem os problemas, incluindo icterícia, febre, fadiga e elevação de enzimas chamadas transaminases.
“Você pode ter um paciente com uma baixa carga viral para o vírus HBV, apesar de uma transaminase elevada. Por isso se faz necessário falar da hepatite Delta, principalmente se for alguém que veio de um local onde a doença é endêmica.”
Prevenção
Tanto Angélica quanto Fabiana explicam que a melhor forma de prevenção contra a hepatite D é a vacinação contra hepatite B.
“A prevenção primária é o ideal. Se não tiver a coinfecção do vírus Delta com o vírus HBV, não haverá essa chance de estabelecimento que irá levar à cirrose”, afirma a presidente da SBOC.
Fabiana acrescenta que o tratamento para a doença ainda não é eficaz. Ele pode durar de um a dois anos e possui baixa taxa de resposta. “A medicação que temos no Brasil é injetável semanalmente e traz vários efeitos colaterais. Muitos pacientes não podem usar.”
Além disso, o tratamento não promove a cura da doença, visa apenas controlar os danos hepáticos.