O que aconteceu entre “pelo menos” junho de 2015 e outubro de 2022. Nesse período “a SAP impossibilitou os parceiros de concorrer em diversos procedimentos de contratação pública e/ou privada, não lhes dando cotação para que pudessem apresentar as suas próprias propostas”. Essa cotação (preço) tem de ser pedido junto da SAP enquanto fornecedora de licenças e subscrição de software de aplicação empresarial. Ou seja, para a Concorrência ficou provado que só quando a SAP não queria o cliente ou o concurso para si é que os parceiros podiam apresentar proposta. Quando queria o cliente/concurso os parceiros não apresentavam propostas nomeadamente porque não obtinham a necessária cotação. Várias empresas terão indicado que questionavam “sempre” a SAP antes de apresentarem propostas.

“Das informações prestadas pelos colaboradores dos vários parceiros, ficou demonstrado que a prática de dirigir questões à SAP com o intuito de aferir a possibilidade de os parceiros concorrerem (por oposição à apresentação de proposta por parte da SAP, de forma exclusiva) era regular, generalizada, estabilizada e transversal”, indica a Concorrência. A AdC diz mesmo que, na análise aos procedimentos do Portal Base para aquisição de licenciamento e/ou manutenção SAP entre 2008 e 2023, em apenas dois, de um universo de 84 procedimentos, se registou a apresentação de propostas por parte dos parceiros, para além da proposta da SAP. E, num universo de 276 procedimentos analisados (constantes do Portal Base, referentes a aquisição de licenciamento SAP e/ou manutenção e suporte associados), em 78% a proposta da SAP coincidiu com o preço base e em 13% a sua proposta apresentou uma diferença até 5% face ao preço base. A SAP contesta estes dados.

“A decisão sobre quem apresentaria proposta – a SAP ou os parceiros – era tomada caso a caso pela primeira, considerando as circunstâncias particulares de cada procedimento e procurando sempre contornar as cláusulas contratuais que não serviam os seus interesses (caso existissem), apenas possibilitando a resposta dos parceiros (com o envio da cotação) quando tal não era conseguido”, lê-se no caso.

Na contratação privada, a decisão sobre quem apresentava proposta era também “do domínio exclusivo da SAP”, com a SAP a “guardar” para si os maiores clientes.

“De todo o modo, quer no âmbito da contratação pública quer no da contratação privada, é inequívoco que a decisão sobre que clientes e/ou procedimentos caberia à SAP ou aos distribuidores fornecer era tomada caso a caso pela SAP”, considerou a Concorrência, para quem é “evidente que as indicações fornecidas pela SAP aos seus distribuidores (e por estes solicitadas), relativas a quem apresentaria proposta às entidades públicas e aos clientes privados, eram sempre cumpridas por estes, que acabavam por se comportar no mercado precisamente nos termos previamente delineados e acordados com a SAP”.

Assim, para a AdC o “objetivo da SAP” era o de “eliminar a concorrência entre os respetivos canais de venda ao cliente final”, “reservando e repartindo clientes entre si, afastando ou limitando conscientemente a concorrência no mercado retalhista, deturpando desta forma o livre funcionamento do mercado e contribuindo para a diminuição do bem estar dos consumidores”.

Esta situação levou a Autoridade da Concorrência a aplicar uma coima à SAP (Portugal) e à sua casa-mãe SAP SE de quase 30 milhões de euros (29.249.000 euros).

Contactada pelo Observador, a SAP Portugal indica que “foi notificada de uma decisão por parte da Autoridade da Concorrência (AdC)”. Assegurando que “a SAP cumpre rigorosamente a legislação nos 180 países onde opera”, indica que “decidiu recorrer desta decisão para tribunal”. 

A Autoridade da Concorrência indica, neste caso, que o regime de clemência “comporta algum grau de risco”, um risco “previamente conhecido pelas requerentes, que, ponderando-o face aos benefícios decorrentes deste regime, escolhem assumi-lo (ou não)”.

E explica ainda: “Efetivamente, quando um requerente submete um pedido de dispensa ou redução de coima coloca à disposição da AdC um conjunto de informações que serão necessariamente escrutinadas no âmbito de uma investigação, nada garantindo que as conclusões dessa mesma investigação coincidam com as avançadas pelo requerente, seja por divergências quanto à configuração jurídica da prática – como ocorreu no presente caso –, seja por quaisquer outros motivos”.

A AdC recusa assim que recaia sobre si “uma qualquer obrigação de cumprir quaisquer expectativas (necessariamente infundadas) que possuam [as visadas], pelo simples facto de pretenderem fazer uso do regime de dispensa ou redução de coima”.

No âmbito deste processo, e depois de a Autoridade da Concorrência ter determinado que neste caso não haveria aplicação do regime de clemência, a SAP retirou os elementos que tinha entregue. Mas foi-lhe devolvido menos do que entendia que deveria ter sido. Já a Autoridade da Concorrência assumiu que a matéria recolhida ao abrigo de inquirições ou diligências promovidas por sua iniciativa ficavam na entidade.

A Autoridade da Concorrência destruiu as gravações das declarações que a SAP fez oralmente, quando voluntariamente se dirigiu à entidade para denunciar o caso, e entregou as transcrições dessas declarações e complemento ao pedido de clemência, assim como o requerimento da SAP para dispensa da coima. Mas nada mais foi devolvido. A SAP contestou. A Autoridade da Concorrência decidiu que o acervo recolhido com as suas iniciativas eram sua pertença.

“Não podem, pois, confundir-se os elementos probatórios trazidos aos processos por via (voluntária) de um requerimento de dispensa ou redução da coima com os elementos probatórios produzidos em diligências determinadas e/ou conduzidas pela AdC. Ainda que tais diligências ocorram em processos em que existiu ou existe tal requerimento de dispensa ou redução de coima”, argumentou a Autoridade da Concorrência. Para a entidade, “os elementos probatórios obtidos em resultado de diligências impostas pela Autoridade às empresas visadas (in casu, as diligências de busca e apreensão, pedidos de elementos de informação e diligências de inquirição) são manifesta e forçosamente distintos dos elementos probatórios que estas escolhem oferecer ao processo administrativo, exclusivamente de sua livre vontade (in casu, os elementos probatórios juntos com o pedido de dispensa ou redução da coima inicialmente apresentado e posterior complemento)”.

E por isso contesta a acusação de ter violado o princípio da presunção de inocência e o direito a um processo justo e equitativo.

Como acontece em muitos outros casos da Autoridade da Concorrência, também as diligências de busca nomeadamente a apreensão de mensagens de correio eletrónico são questionadas pelas visadas, até por não ter sido, segundo a SAP, precedida de autorização do tribunal e porque não fez a distinção entre emails lidos e não lidos, o que inviabilizaria, no seu entendimento, a aceitação de diligências subsequentes. O tema sobre a apreensão de correio eletrónico, sem autorização do juiz, tem sido alvo de vários recursos em diferentes processos da Autoridade da Concorrência, mas tem havido várias interpretações.

A Autoridade da Concorrência, claro, contesta todos os argumentos da SAP, até porque, contrapõe, as visadas não alegaram nulidade no prazo devido.