Sabia o leitor que em tempos se quis criar na Roménia um parque de diversões chamado Dracula Park, para capitalizar o facto de um dos grandes mitos da literatura ocidental ser oriundo da Transilvânia? Os investidores ficaram sem o seu dinheiro e o parque nunca foi construído — mas o fait-divers vai direitinho ao coração do Dracula que o cineasta romeno Radu Jude estreou este domingo no Festival de Locarno.
Cronista impiedoso do seu país e da sua história, Radu Jude (Bucareste, 1977) já saiu duas vezes agraciado do festival suíço, por Scarred Hearts (Prémio do Júri em 2016) e Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo (Prémio do Júri em 2023), e recebeu há poucos meses, com Kontinental ‘25, o prémio de Melhor Argumento no Festival de Berlim (onde Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental lhe deu o Urso de Ouro em 2021). Mas o cineasta tem vindo a transcender a crónica de costumes da Roménia moderna para se alargar à crítica de toda a civilização ocidental apanhada nas garras do capitalismo terminal, chegando à última fronteira dessa abordagem nas quase três horas deste Dracula — que, escusado será dizer, nada tem a ver com as versões que todos conhecemos.
O Drácula de Radu Jude não é apenas Vlad Tepes, o nobre nacionalista da Idade Média que esteve na origem do mito literário, nem é apenas o vampiro sedutor das versões hollywoodianas. É também todos aqueles que vampirizam uma sociedade ou uma classe em proveito próprio, sejam eles um patrão que explora os empregados para maximizar os seus lucros ou um Zé-ninguém que defende a lei do mais forte. No caso, o vampiro é um cineasta (Adonis Tanta) que recorre à inteligência artificial (IA) para (como alter ego do próprio Radu Jude) criar um filme sem dinheiro, solicitando a várias ferramentas que produzam variações sobre o tema de acordo com as suas sugestões.
É talvez aqui que reside a grande ousadia do filme: recorrer à IA generativa para criar breves interlúdios propositadamente grotescos (cerca de 20 minutos dos 170 do filme) como denúncia da “vampirização” a que esta nova indústria submete a imagem. A certa altura, o nosso realizador pede à tecnologia que produza uma variação do Drácula de Francis Ford Coppola, ao que o computador responde: “Não posso porque não disponho dos direitos.” Mas explorar a sexualidade feminina ou criar imagens grotescas que nada têm a ver com a realidade? Isso ela faz enquanto o diabo esfrega um olho — por que razão, afinal, haveríamos de esperar que a tecnologia tivesse moral, se quem a cria não a tem?
Kontinental ‘25 era a história de um dilema moral (uma mulher que receava ter levado um homem à morte apenas por estar a fazer o seu trabalho); Dracula, que Radi Jude rodou ao mesmo tempo e que define como filme-complemento daquele, é o retrato de uma sociedade onde a moral já não tem significado de espécie alguma. Como se vê num episódio em que um pequeno grupo de pessoas discute a tortura — perdão, o “interrogatório reforçado” — do exército americano em Guantánamo como uma prática útil, se salvar vidas humanas. A mesma pessoa que responderá que “nunca se provou que a tortura tivesse salvado uma única vida”, vê-la-emos a continuar a sua perseguição a um pobre coitado que se diz ser um vampiro.
Foi sempre nesta direcção que o cinema de Radu Jude seguiu: a de um olhar aparentemente subversivo, mas de uma lucidez perturbadora, que faz explodir os limites do bom gosto e confronta o espectador com a sua complacência e com a sua cumplicidade. Um dos filmes dentro do filme, uma adaptação do primeiro romance romeno sobre vampiros, invoca os teledramáticos da era Ceausescu, e ao mesmo tempo o pensamento de Heidegger e Schoppenhauer, para falar da religião como vampiro da alma. Noutro episódio, Drácula é um patrão latifundiário enfrentando a revolta dos operários que querem fazer valer os seus direitos; um “Drácula Tik Tok” propõe por sua vez Vlad Tepes como o homem forte totalitarista de que a Roménia precisa; uma história de amor nos tempos comunistas faz do macho um sedutor vampiresco. Tudo isto orbitando em torno de uma noite num “restaurante típico”, vulgo “armadilha para turistas”, que segue as regras do capitalismo selvagem do século XXI — lucro sim, remuneração não.
E isto é só uma fracção do que se passa nas três horas deste Dracula, ele próprio vampiro de outros filmes e da energia do espectador, medicamento de dissipação lenta que o realizador diz marcar o fim de um ciclo. Já não se trata de esperar demasiado do fim do mundo; trata-se mesmo de já não esperar nada a não ser o fim do mundo. E daqui, literalmente, ninguém sai vivo. Nem mesmo morto-vivo.