A certidão de nascimento diz que a jornalista Sel Erder Yackley nasceu há 85 anos e oito meses em Istambul, na Turquia. Porém, o documento não acompanha a idade cerebral da premiada repórter e escritora, considerada uma superager”. Sem tradução para português, o termo se refere a pessoas que passaram dos 80, mas que, porém, têm a capacidade cognitiva — incluindo a memória — de alguém três décadas mais jovem. Há 25 anos, a Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos, estuda esses indivíduos e, agora, publicou um artigo na revista Alzheimer’s & Dementia, com algumas pistas sobre a extraordinária forma como seus cérebros envelhecem. 

Até hoje, 290 pessoas já participaram do programa, sendo 101 classificadas como superagers. Para ser enquadrado na categoria, o voluntário passa por avaliações, como ter de lembrar nove ou mais palavras de uma lista de 15 — aos 80 anos, essa média é de cinco. No Programa SuperAging da Universidade de Northwestern, eles têm o perfil biológico e comportamental estudados, na expectativa de que esse conhecimento possa beneficiar a população com estratégias clínicas.  

Segundo Sandra Weintraub, professora de psiquiatria e neurologia da instituição norte-americana, ao identificar características biológicas e comportamentais associadas ao envelhecimento extraordinário do cérebro, os cientistas esperam descobrir novas estratégias para promover a resiliência cognitiva. Assim, poderia, por exemplo, retardar ou prevenir o Alzheimer e outras doenças que causam declínio cognitivo e demência.

Perfil

“Nossas descobertas mostram que uma memória excepcional na velhice não só é possível, como também está ligada a um perfil neurobiológico distinto”, conta Weintraub, autora correspondente do artigo. “Isso abre caminho para novas intervenções que visem preservar a saúde do cérebro até as últimas décadas da vida.” Por enquanto, os cientistas sabem que ser um superager não depende de um único fator. Há componentes genéticos, biológicos e comportamentais. 

No caso de Sel Erder Yackley, que vive em Chicago, a longevidade da mãe e do pai sugere a força da genética — eles alcançaram, respectivamente, 86 e 88 anos. Porém, a jornalista atribui a jovialidade de seu cérebro ao fato de sempre ter sido ativa. “Acredito que falar duas línguas (turco e inglês) ajudou, mas também nunca fiquei parada. Sempre me interessei em aprender e fazer coisas novas”, conta Yackley, que canta em um coral, faz trabalhos manuais em crochê e é designer de joias. 

Vinte e cinco anos de estudo também mostram que não há uma receita de superager. Alguns dos participantes fumam, outros bebem; há quem seja adepto de uma dieta saudável e de se exercitar, mas também os que dormem pouco e passaram a vida sob estresse. Porém, segundo Sandra Weintraub, há um traço em comum entre os 101 superagers avaliados até hoje, desde 2000, quando o programa foi iniciado: a sociabilidade elevada. “Eles mantêm laços sociais fortes e relatam satisfação com suas relações, além de maior extroversão do que pessoas da mesma idade”, afirma. 

Surpresa

A ideia de investigar os superagers surgiu na década de 1990, quando os cientistas receberam o cérebro de uma mulher de 81 anos que havia participado de um estudo em Miami. Ela não apresentava sintomas de declínio cognitivo e, em testes de memória, obtinha resultados considerados superiores para sua faixa etária — o equivalente aos de uma pessoa de 50 anos. A surpresa veio na análise dos tecidos do órgão: havia apenas um emaranhado neurofibrilar em todo o córtex entorrinal, região do cérebro que atua como uma via de cruzamento entre o hipocampo e outras partes. 

Os emaranhados neurofibrilares são lesões típicas da doença de Alzheimer, mas que estão presentes, em menor quantidade, no cérebro envelhecido, independentemente do diagnóstico de demência. No caso da mulher que teve o órgão examinado, havia uma quantidade muito baixa, algo raríssimo na faixa etária dela. A descoberta incentivou a criação do programa de superager. Segundo Sandra Weintraub, o objetivo é responder a duas perguntas: “É possível escapar do declínio cognitivo associado à idade avançada? Se sim, existe uma assinatura biológica que explique essa resistência?.”

As imagens de ressonância magnética dos participantes do programa mostram que, ao contrário de idosos típicos, os superagers também não apresentam o afinamento cortical esperado com a idade. Além disso, a região do cíngulo anterior é mais espessa até mesmo do que em adultos de 50 anos a 60 anos. Essa área está ligada a motivação, regulação emocional e comportamento social — aspectos condizentes com o perfil dos participantes.

Mecanismos biológicos conferem resistência

Segundo o estudo da Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos, que avalia o cérebro de idosos com preservação cognitiva extraordinária, no nível celular, há diversas particularidades nos chamados superagers, como um número maior de neurônios de von Economo, um tipo raro de célula associada a comportamentos sociais complexos e encontrados em maior densidade nestes idosos do que em jovens. Também foi identificada uma quantidade neuronal superior no córtex entorrinal, o que pode justificar a resistência maior à degeneração. O sistema colinérgico — essencial para a atenção e a memória — apresentou menos desgaste. Outra característica foram níveis reduzidos de inflamação na substância branca. 


interação entre idosos

Interação social foi um ponto em comum entre os idosos
(foto: PiXBay/Divulgação )

O artigo revela que uma participante ingressou no estudo aos 60 anos como voluntária cognitivamente saudável, para ser comparada aos superagers. Aos 80, porém, foi classificada como portadora de um cérebro extraordinariamente jovem. Quinze anos depois, sua pontuação no teste de memória era idêntica. Até sofrer um acidente vascular cerebral, aos 84 anos, viveu de forma independente e ativa. Quando morreu, o órgão foi estudado e mostrou pouquíssimos sinais de Alzheimer, além de preservação quase total do hipocampo e da amígdala.

As descobertas, porém, indicam que o superenvelhecimento não é fruto apenas de sorte genética, embora genes como KLOTHO e BDNF possam contribuir para a integridade do cérebro. O programa sugere que a combinação de fatores biológicos — espessura cortical, integridade do sistema colinérgico, baixa inflamação e densidade neuronal diferenciada — cria um fenótipo de resistência e resiliência contra o declínio cognitivo. Para os cientistas, entender esses mecanismos pode abrir caminho para intervenções capazes de preservar a memória por mais tempo, retardando não apenas o envelhecimento normal, mas também a progressão de doenças como o Alzheimer. 

Laços

Os pesquisadores da Universidade de Northwestern, porém, destacam que algumas pistas sobre a incrível juventude do cérebro dos superagers já podem auxiliar a busca por um envelhecimento cognitivo mais saudável. Uma delas é a importância dos laços sociais, um traço comum a todos os participantes do estudo. Emily Pires, especialista em neurociência e diretora do Centro de Treinamento BrainEstar, em São José dos Campos (SP), explica que pesquisas anteriores constataram a importância da interação com outras pessoas, algo que funciona como um “exercício cerebral”. 

 “Quando nós deixamos de estimular esse circuito, principalmente em idades mais avançadas, aumentamos o risco de acúmulo de proteínas tóxicas associadas a doenças como Alzheimer”, diz Emily Pires. “A solidão crônica está ligada ao aumento de inflamações sistêmicas e à diminuição da conectividade cerebral, dois fatores que aceleram o declínio cognitivo e a vulnerabilidade a doenças neurodegenerativas.” (PO

 

Paloma Oliveto Repórter sênior

Formada na Universidade de Brasília, é especializada na cobertura de ciência e saúde há mais de uma década. Entre as premiações recebidas, estão primeiro lugar no Grande Prêmio Ayrton Senna e menção honrosa no Prêmio Esso.