Como todo bom cineasta moderno, Wim Wenders, que faz 80 anos nesta quinta-feira (14), sempre se pergunta o que é cinema. Pode-se pensar numa resposta —cinema é movimento, deslocar-se, ir de um lugar a outro, experimentar o desterro, a dor, a orfandade.

É dessa matéria que se fizeram seus melhores filmes. Alguns deles estarão sendo exibidos no miniciclo que acontece em São Paulo, nas salas Reag Belas Artes e Cinesystem Frei Caneca, e no Rio de Janeiro, na Cinesystem Botafogo, até 3 de setembro.

Nesses filmes passeiam almas vagabundas. Começando pelo começo —em “Alice nas Cidades”, de 1974, encontramos Phillip Winter (Rüdiger Vogler), jornalista sofrendo de um bloqueio criativo que em princípio deveria levar Alice, garota de nove anos, ao encontro da mãe em um aeroporto. Mas o desencontro acontece, o que fará do jornalista o acompanhante da menina, enquanto roda em busca de um lugar em que possa ser acolhida.

É quase o vagabundo de Chaplin, esse jornalista. Com uma diferença: sendo alguém em busca de uma história, eis que a tal história surge inesperadamente diante dele. Como um aborrecimento, talvez, mas como afeto também.

São assim, afinal, as melhores histórias de Wenders: elas não existem e, ao mesmo tempo, estão debaixo do nariz. Há um não acontecer ali em que tudo acontece. De preferência com amplos deslocamentos, que se repetiriam em “No Decorrer do Tempo”, por exemplo, onde o errante é um projecionista cinematográfico.

As coisas são um pouco diferentes, mas nem tanto, em “O Amigo Americano”, de 1977, baseado em Patricia Highsmith e que seria o passaporte para Wenders chegar aos Estados Unidos.

Ali o deslocamento se dá entre Hamburgo e Paris, pois na primeira vive Jonathan (Bruno Ganz), moldureiro vitimado por um câncer, e na segunda ele vai a conselho de Tom Ripley (Dennis Hopper), para visitar médicos célebres. Na verdade, Ripley o induz a se tornar um assassino.

Estranho passaporte, esse. Coloca o europeu nas mãos de um americano, como viria a acontecer com Wenders logo em seguida, em sua estranha passagem pelos Estados Unidos. O deslocamento o levou direto ao cinema-mito. E a um produtor com controle da forma final de seu “Hammet” (1982). E o produtor era Francis Ford Coppola.

Talvez tenha surgido aí seu filme mais soturno: “Paris, Texas”, de 1984 —que, por sinal, não está na mostra. Ali também tudo é questão de deslocamento: um homem vaga nos Estados Unidos pelo deserto, à espera não se sabe bem do quê —bem, em certo momento se saberá.

Esse deserto, a terra de ninguém, esse vazio, essa desesperança, o que seriam? Talvez a desilusão de Wenders com os Estados Unidos, sua terra prometida, a pátria do cinema. E a desilusão com o cinema, talvez.

Antes desse, Wenders dirigiu “O Estado das Coisas” em 1982. Nesse existe menos movimento, em princípio. Há uma equipe de filmagem parada. Espera que o produtor volte da viagem aos EUA com dinheiro para completar a filmagem.

Se a primeira parte da carreira de Wenders, na Alemanha, era quase uma alegre espera da ida aos Estados Unidos, “Paris, Texas” enuncia, já no título, o deslocamento. De certa forma, a desilusão.

Filmar em Lisboa enquanto se arrastava a montagem de “Hammet” era quase um sintoma dessa desilusão. Mas Wenders a trabalhava bem, criativamente. O filme que se fazia era uma ficção científica. O filme para o qual o produtor não encontrará dinheiro. É como se Wenders pressentisse o fim da era do autor, mas não só: o fim da predominância do cinema europeu no Ocidente.

A Itália já fraquejava, a nouvelle vague envelhecia, e agora o ciclo da Alemanha Ocidental parecia chegar a seus últimos dias.

“O Céu de Lisboa”, de 1984, parece confirmar esse caminho. Ali, um técnico de som é chamado para trabalhar em um filme. Ao chegar, não encontra mais o filme. Ele foi abandonado pelo diretor. O técnico vagueia então por Lisboa e aproveita para recolher que sirvam ao seu trabalho. Em dado momento, encontra Friedrich, o diretor, mas não exatamente o diretor que ele esperava.

Friedrich é um diretor cheio de dúvidas. E sua dúvida maior é sobre o cinema: existirá ainda? E para quê? Para produzir imagens prostituídas?

O “Céu de Lisboa” é, de certo modo, o filme do fim do cinema moderno e de todas as esperanças que trouxera de conciliar de maneira saudável a arte e o dinheiro. Wenders, como Friedrich, sabe que perdeu.

Não por acaso, a carreira de Wenders decai daí por diante. Com exceção, talvez, de “Asas do Desejo”, lançado em 1987, que anuncia seu retorno a uma Berlim então ainda tão dividida quanto o próprio Wim Wenders esteve, sempre, dividido entre Alemanha e EUA.

Esses quatro filmes que o ciclo do Belas Artes exibe celebram com justiça os 80 anos de Wim Wenders e resumem bem os altos e baixos não tanto da carreira do cineasta, como de seus sentimentos em relação a uma arte que a toda hora parece namorar o seu fim. Toda a obra de Wenders, no que tem de melhor, parece um prelúdio desse fim.