Partamos do princípio de que o espectador não sabe quem é Abdellatif Kechiche, ou que apenas se recorda dele pelo magistral O Segredo de um Cuscus, premiado em 2007 no Festival de Veneza. Partamos igualmente do princípio de que o espectador não acompanhou as acusações de comportamentos abusivos que o perseguem desde A Vida de Adèle, Palma de Ouro em Cannes em 2013, e que não sabe nada da controvérsia que rodeou em 2019 o ainda inédito Mektoub, My Love: Intermezzo.
Esse espectador verá Mektoub, My Love: Canto Due, o há muito aguardado capítulo final dessa adaptação livre do romance de François Bégaudeau, finalmente estreado esta segunda-feira no Concurso Internacional do Festival de Locarno, e perguntará: por que é que há tanta polémica a rodear este filme que nada tem de especialmente chocante, polémico, perturbador?
As duas horas e vinte de Canto Due “completam” a história iniciada em Mektoub, My Love: Canto Primeiro (2017): a “educação sentimental” do jovem Amin, estudante de Medicina que decidiu dedicar-se ao cinema, e da sua família alargada em Sète, no Sul de França. Quem não tiver visto o primeiro filme, do qual este é a sequela directa, poderá sentir-se um pouco perdido nas esquivas voltas e reviravoltas das relações entre as personagens; mas, à excepção de uma única cena de sexo elegantemente filmada e necessária para a narrativa do filme, nada há aqui que possa sequer clamar à controvérsia.
Aliás, perante tudo o que se diz de Kechiche, é espantoso como Canto Due é um filme de rostos mais do que de corpos, filmados com uma atenção ao outro, uma paciência, um enorme amor pela maneira como basta um olhar, uma expressão, uma postura, para revelar o essencial. Toda a gente neste filme passa o tempo a olhar para toda a gente. E é esse jogo de olhares, à luz simultaneamente generosa e implacável de Sète, que transporta as correntes de desejo que motivam e movimentam estas personagens — bem como a sensação de que o “mektoub”, o destino do título, está permanentemente a pregar partidas a esses desejos.
O novo filme concentra-se no modo como os destinos de Amin se cruzam com os de uma estrela de televisão norte-americana e o seu marido produtor, acenando-lhe com a possibilidade de filmar o seu guião de ficção científica entre um homem e uma enfermeira andróide, e com o primo Tony a funcionar de novo como “elemento do caos” que vem relançar os dados. E, de repente, reconhecemos os motivos, a estrutura, a sequência — Canto Due parece “duplicar” a lógica entrópica de O Segredo de um Cuscus em direcção ao desastre (que fica fora de campo), e perde algum gás quando, a meia hora do final, introduz um elemento de policial que serve de pretexto para parodiar uma certa mentalidade de “porteirinha”.
Essa sensação de déjà vu não minimiza em nada a contínua capacidade de Kechiche e do seu espantoso elenco para criar no ecrã, mais do que personagens, seres humanos que vivem à nossa frente. Mas também não nos impede de nos perguntarmos quão próximo estará este filme do desejo inicial do realizador, sabendo-se que foi remontado obsessivamente ao longo dos últimos cinco anos e finalizado já depois do AVC que em Março acometeu o cineasta de 64 anos.
Tal como às suas personagens, o “mektoub” pregou-lhe uma partida trágica: esta crónica solar do fim da inocência (sentimental e artística) é um regresso àquilo que ele melhor faz. Mas era este o Canto Due que tinha na cabeça em 2017, ou é apenas o que lhe é possível em 2025? Ninguém a não ser ele o sabe. E essa pergunta pairará sempre sobre este filme. Imerecidamente.