Se isso acontecer, “temos todos de ir embora”. Kremlin entregou documento aos EUA no qual propõe ficar com alguns territórios controlados pela Ucrânia – é condição para aceitar um cessar fogo
Pânico no leste da Ucrânia com Trump a ponderar ideia de ceder territórios à Rússia
por Nick Paton Walsh, Natalie Wright, Kosta Gak e Brice Laine, CNN
Nas praias do pequeno lago salgado de Sloviansk, onde as águas medicinais permitem um momento de descanso que contrasta com a constante violência das linhas da frente a poucos quilómetros, parece sombria e surreal a conversa sobre um acordo de cedência de territórios na cimeira do Alasca, marcada para esta sexta-feira.
“Sinto-me como se estivesse a flutuar para longe desta realidade”, diz Mykhailo, jornalista local, entre mergulhos na água. Nas areias do lago, a vista é a de um grande abrigo antiaéreo de betão. Perto daqui, desta cidade a que, em tom de brincadeira, Mykhailo chama “a Cidade do Lago Salgado de Sloviansk”, os bombardeamentos são frequentes.
Contudo, a proposta do Kremlin entregue ao enviado especial dos EUA, Steve Witkoff, que consiste em trocar um cessar-fogo pelas partes do Donbass que a Rússia ainda não conquistou, significaria que esta cidade e as outras que lhe são próximas, podem tornar-se subitamente território de Moscovo. E, mesmo nesta praia tranquila, esse cenário provoca aquilo a que Mykhailo chama “pânico”.
“Muitos dos meus amigos querem ficar aqui. Mas, se acontecer, temos todos de ir embora”, diz. “Mas, para ser franco, não acho que isso vá acontecer.” Há o reconhecimento de que a diplomacia de alto risco, como a que Donald Trump está a manter com o presidente russo Vladimir Putin, pode falhar.
“Trump agiu de forma errada. Foi tirar Putin do lamaçal. Tirou-o de lá e disse ‘Vladimir, quero falar contigo, eu gosto de ti’”, reage Mykailo. “Ele não se importa que haja ucranianos a morrer todos os dias.”
Banhistas saem do Veysovo, um lago de água salgada conhecido pelas suas propriedades terapêuticas em Sloviansk, na Ucrânia. Imagem tirada a 8 de agosto foto Pierre Crom/Getty Images
Para Ludmila, que se desloca até às águas numa cadeira de rodas, o lago salgado é sinónimo de alívio. Por breves momentos, o ato de flutuar proporciona um alívio dos ferimentos causados quando pisou uma mina terrestre há dois anos. Esta dor diária deixa-a pouco impressionada com a diplomacia.
“Lá estão eles a mentir”, afirma com desdém. “Para eles é tudo um espetáculo. Decidem uma coisa, dizem outra, fazem outra. A política sempre foi assim.”
Por toda a região de Donetsk, a notícia do emergente acordo de Witkoff com o Kremlin – confuso nos pormenores e imediatamente recusado por Kiev – agravou ainda mais as vidas já devastadas pela guerra.
A cidade de Sloviansk foi tomada pela primeira vez pelos “separatistas” de Moscovo em 2014, antes de as forças ucranianas retomarem o controlo. Foram cavadas novas valas a oeste, à pressa, preparando-se a possibilidade de a ofensiva russa em curso ameaçar a cidade outra vez. Contudo, por estas bandas, poucos imaginavam que o principal aliado, os Estados Unidos, pudesse ponderar a ideia de doar aquela que é a sua casa.
Na maternidade da cidade, a única unidade do género a funcionar num raio de quilómetros, Taisiya acaricia a filha Assol. A bebé nasceu no domingo, num mundo onde, de repente, os riscos de estar em Sloviansk parecem ter-se multiplicado.
“Vi as notícias”, diz. “Ia ser muito mau, mas não temos qualquer influência. Não é uma decisão nossa. As pessoas vão, pura e simplesmente, doar as suas casas.”
“A guerra apanhou-os lá”
Os nascimentos continuam, as mortes também. A de Sofia Lamekhova é particularmente angustiante. Os pais, Natalia e Sviatoslav, ficaram felizes quando ela e o marido, Mykyta, decidiram ir viver para Kiev com o filho récem-nascido, Lev. “Queríamos que eles se mantivessem longe da linha da frente. Aqui, em Sloviansk, todos os dias há ataques de drones e bombardeamentos”, conta Sviatoslav.
Contudo, esta família foi encontrada nos escombros de um ataque aéreo russo feito a 31 de julho a um prédio residencial em Kiev. Morreram durante o desabamento do edifício. Sofia estava grávida de três meses e ia deslocar-se a Sloviansk para contar a notícia aos amigos.
“Eles saíram da guerra. Lá era tranquilo, mas a guerra apanhou-os lá”, diz Natalia. Sviatoslav acrescenta: “É impossível aceitar isto, é impossível aceitar a perda de um filho”.
Bombeiros trabalham num local atingido por mísseis russos em Sloviansk, na Ucrânia, a 12 de julho foto Vincenzo Circosta/Anadolu/Getty Images
Os serviços de emergência apagam um incêndio após um ataque com um drone russo a um armazém em Sloviansk, na Ucrânia, a 9 de agosto foto Pierre Crom/Getty Images
Na noite anterior à morte de Sofia tinham conversado todos. “Ela disse que queria muito vir a Sloviansk. Para contar a notícia a toda a gente, espalhar a alegria. Mas não voltaram. Voltaram juntos, de uma forma diferente”, recorda Natalia.
A mãe de Sofia refere-se ao funeral da família nos arredores de Sloviansk. Um jato ucraniano sobrevoa a cidade enquanto ambos cuidam das flores que se cobriram de poeiras nas campas. Este casal não pode deixar Sloviansk. É aqui a sua casa, onde também dão comida e água a muitos outros habitantes – muitas vezes idosos que vivem sozinhos e sobrevivem de esmolas.
A estação de comboios mais próxima é Kramatorsk, a capital de Donetsk, controlada pela Ucrânia. É uma cidade movimentada, onde a vida civil se mantém, entre os militares que ali estão sediados. Um grande ataque aéreo derrubou um edifício central, destruindo quatro andares e chegando à cave. Os ataques de drones russos são regulares. A cidade dorme com a urgente questão da sobrevivência em contexto de guerra – e da própria guerra.
O comboio de Kiev chega ao som das sirenes de ataque aéreo. Há dezenas sentadas na plataforma, seja para cumprimentar ou para substituir os que chegam da capital. Tetyana está a chorar. O marido, Serhiy, luta desde o segundo dia da invasão total da Rússia. Recebeu dois dias de folga da unidade de tanques nos arredores de Kostiantynivka, de forma a poder celebrar o aniversário.
Enquanto a mulher chora, o soldado avisa-a sobre a sua agitação com gentileza. “Tinha sido melhor que ela não tivesse vindo”, diz. “Calma.” Tetyana tem pouco interesse nos meandros da diplomacia de Trump. “Sabe qual é o meu sonho? Que o meu marido volte para casa. Não me importo com territórios. Só quero que ele esteja vivo e volte para casa.”
O comboio parte para regressar à capital. Há homens a colar as mãos nas janelas de vidro que se movem. Há uma rapariga a gravar um coração numa porta que se fecha. As sirenes continuam.