Foi depois de um arroubo de loucura da avó que a escritora e professora de escrita criativa Flávia Péret decidiu traçar o perfil daquela mulher até então finíssima e elegante. A avó entregou uma enxada para a cuidadora e ordenou aos berros que arrancasse todos os pés de couve, alface, cebolinhas e manjericão, e que destruísse aquela “maldita horta”. Coisa impensável para quem meses antes ralhou com a mesma cuidadora, que havia pego uma folha de couve do local.
A atitude da avó foi a manifestação mais evidente do Alzheimer que a acometeu e que Flávia Péret descreve em “Coisas presentes demais”, livro que ela lança nesta sexta-feira (25/7), pela editora Relicário, na Quixote Livraria.
Nos três meses seguintes ao início da escrita, a avó de Flávia teve uma piora vertiginosa, o que levou a escritora a aceitar o diagnóstico que vinha negando há tempos. A escrita, então, que começou como registro diário, transcendeu o mero desabafo pessoal, transformando-se em quase ficção.
“O processo de escrita começou com a pergunta: Quem é essa pessoa? Por que ela fez isso com o jardim, que era um xodó dela?”, conta Flávia.
“Naquele momento, já havia um diagnóstico de Alzheimer. Minha família já tinha levado minha avó ao médico. Mas eu não acreditava nesse diagnóstico de jeito nenhum, porque ela ainda era uma pessoa muito presente. Lembrava-se de tudo. Tinha pequenos lapsos de memória, mas continuava completamente consciente”, acrescenta.
Fragmentos
Ao longo das 188 páginas, a narrativa se constrói em fragmentos, numa espécie de colcha de retalhos, onde o leitor vai juntando pequenas pílulas para construir o retrato da avó da escritora – a personagem não tem nome, é chamada apenas de Avó.
Aos poucos, vamos descobrindo que ela sempre foi uma mulher bonita, vaidosa, consciente da própria beleza e que enriqueceu na virada do século, quando seu único filho homem melhorou significativamente de vida. Natural de Pinheiros Altos, foi para Mariana ainda criança e lá virou uma espécie de influencer de sua época.
“A avó jamais tentou esconder seu nariz em pé, seus delírios de riqueza”, escreve Flávia. “Antes de perder seu tempo com alguém, ela analisava seu interlocutor dos pés à cabeça… As pessoas eram classificadas em gente jeca e gente chique. Para piorar a situação, era extremamente bonita, o que a deixava ainda mais metida”.
Flávia não faz um retrato fiel da avó, contudo. Durante a produção do livro, resgatou memórias da infância e conversou com parentes no intuito de reconstituir o passado da avó e ficcionalizar o material.
“Quando a gente está muito imersa na história, a gente tem que se distanciar um pouco. Esse é, para mim, o principal recurso literário. Quando eu me afasto da avó é como se eu a olhasse do mesmo jeito que olho uma foto. E aí começo a imaginar e ficcionalizar. Consigo ver para além do que eu vejo normalmente e dos meus preconceitos”, afirma.
“Coisas presentes demais” também incorpora na narrativa pesquisas sobre Alzheimer e transcrições literais de um podcast do Drauzio Varella sobre a doença.
“(O livro) vai costurando memória, realidade, ficção num tom artístico. O Alzheimer serve como pano de fundo para tratarmos do esquecimento”, conclui.
“COISAS PRESENTES DEMAIS”
• De Flávia Péret
• Editora Relicário
• 188 páginas
• R$ 65,90 (livro físico)
• Lançamento com sessão de autógrafos nesta sexta (25/7), às 19h, na Quixote Livraria (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi)