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Por Rafael Dragaud*
No Brasil, poucos escaparam de cruzar, ainda que de relance, com seu nome, seu rosto ou sua voz — seja num clipe que apareceu por acaso, num post compartilhado, num boato maldoso ou numa notícia carregada de julgamento. Independentemente do seu interesse musical, idade ou da bolha social a que pertence, é improvável que você não tenha sido, em algum momento, atravessado pela presença controversa desse jovem rapper carioca de nome peculiar: Oruam.
A escolha de transformar Mauro, seu nome de batismo, em um palíndromo parece muito mais que um simples jogo de letras: soa como um gesto inaugural, um anúncio enfático de como ele pretende enfrentar a caminhada da sua vida: andando na contramão. Não há aqui juízo de valor, apenas constatação – já que neutralidade é o último sentimento que Oruam é capaz de provocar.
O nome de batismo, como se sabe, é herança, decisão dos pais, quase sempre carregada de expectativas, memórias ou vaidades que não escolhemos. No caso dele, veio de Márcia Gama dos Santos Nepomuceno e Mauro Davi dos Santos, o Marcinho VP, apontado como um dos principais líderes da facção Comando Vermelho. Crescer sob essa assinatura paterna já o colocava dentro de um roteiro pré-escrito, com rótulos e presságios que o antecediam: morador de favela, herdeiro do crime, “bandido por natureza”. Ao inverter o próprio nome, Oruam parece ter feito um gesto de apropriação, de virar a mão do destino e, ao mesmo tempo, de reafirmar o peso de sua origem.
Hoje, esse jovem de 26 anos, não é mais apenas um artista da música. Por ser um personagem que decidiu interpretar a si mesmo até as últimas consequências, Mauro-Oruam encontra-se preso, desde o dia 22 de julho, numa cela coletiva no presídio Bangu 3, Rio de Janeiro: tornou-se protagonista de um true crime contínuo, transmitido em tempo real pelas redes sociais. E foi aí que a história deixou de ser apenas dele para se tornar, também, nossa.
Da confortável poltrona da opinião fácil, alguém dirá que ele poderia ter feito música consciente, ruptura pública com o pai, superação exemplar. Talvez até pudesse. Mas Oruam preferiu o plot twist. Postou vídeos desafiando a polícia, transformou a própria prisão em clímax de temporada e deu à opinião pública exatamente o que ela ama odiar: uma narrativa onde arte, crime e identidade colidem sem pedir desculpas. É como se a editoria cultural fosse invadida pelas páginas policias. Com Oruam, muitas fronteiras já não se sustentam: com ele, cultura e crime se retroalimentam num mundo cada vez mais moldado pela lógica dos algoritmos: atenção sem contexto.
Tenho 53 anos — e digo isso não como detalhe irrelevante, mas como marcador geracional. Não gosto da música do Oruam – e não escondo. Mas esse é justamente o ponto: a minha opinião estética é irrelevante, porque 11 milhões de ouvintes mensais no Spotify estão ouvindo, repostando e decorando suas letras. Mesmo sem apreciar, me obrigo a reconhecer quando algo escapa ao gosto e vira fenômeno. E é aí que a coisa ganha relevância e passa a merecer mais tempo de análise e menos opinião ligeira.
Oruam hackeou um sistema que já o marcava como criminoso antes mesmo que ele rimasse uma sílaba. Se a sociedade já o via assim, por que não lucrar com isso? Se o mercado exige autenticidade, por que não entregar a versão mais radical possível: aquela em que não se sabe mais o que é performance e o que é boletim de ocorrência?
Por mais inovador e polêmico que pareça aos nossos olhos, nos Estados Unidos, essa lógica criou um big business há décadas. Por lá, a vida bandida rende grana, álbuns, status. Pra muitos rappers norte americanos, a cadeia funciona como selo de legitimidade. No Brasil, por muito tempo, artistas oriundos da mesma realidade e território que Oruam tiveram que performar a narrativa de superação, negar o passado, marcar distinção e silenciar a origem. Oruam inaugurou uma outra via: a da autenticidade criminal como ativo. O estigma, aqui, não é obstáculo. É combustível. A prisão, longe de ser um fim, é o clímax narrativo, data de lançamento de disco novo.
Enquanto isso, nós — eu, você, todo mundo — oscilamos entre a indignação moral e o consumo cínico. Reclamamos das letras violentas, mas o seguimos nas redes sociais e consumimos tudo que sai sobre ele. Gritamos “apologia!” enquanto viralizamos a sua estética, protegidos pela atitude crítica. Sonsos, queremos a emoção do perigo com a segurança da distância. Oruam entrega isso com precisão cirúrgica: a marginalidade sem filtro, o crime como estética bruta, e o bônus de podermos dizer que “agora ele passou dos limites”. Como se houvesse algum limite, de fato.
Mais do que personagem de um drama pessoal, vejo Oruam como um investidor, de perfil agressivo, da indústria da narcocultura – fenômeno global que transforma o universo do tráfico de drogas em linguagem, produto e estilo. Que romantiza, estetiza e normaliza a violência, o poder territorial, o dinheiro fácil, a ostentação e a masculinidade armada. Embora enraizada em contextos específicos de desigualdade, exclusão e criminalização, é uma indústria bastante ampla composta por música, cinema, moda, e muita rede social, sempre combinando sedução estética com narrativas de transgressão, e criando uma mitologia em torno do “bandido bem-sucedido”, do “chefão invencível” ou do “sobrevivente do gueto armado”. Queremos exemplos?
Ao inverter o próprio nome, Oruam parece ter feito um gesto de apropriação, de virar a mão do destino e, ao mesmo tempo, de reafirmar o peso de sua origem
Na música, a narcocultura encontrou um dos seus veículos mais eficazes. No México, os narcocorridos tratam traficantes como heróis populares, em letras que misturam violência, honra e riqueza. Nos Estados Unidos, o gangsta rap, o trap e o drill consolidaram uma estética em que armas, dinheiro e poder territorial são símbolos de prestígio, um imaginário replicado nas periferias de diversos países, incluindo o Brasil, onde o funk proibidão sempre expôs o traficante como líder carismático, defensor da comunidade e ícone de consumo, mixando ostentação, erotização e lealdade à facção.
O cinema e as séries amplificaram esse fascínio global. Scarface (1983) é um mito pop, com sua estética exagerada e a figura do criminoso como símbolo de ascensão pela força. Cidade de Deus, apesar da crítica social, acabou canonizando o “bandido fotogênico”. E com Narcos, a Netflix transformou Pablo Escobar em um personagem global: brutal e carismático, com a ambiguidade reservada aos grandes anti-heróis.
Na moda, a narcocultura transbordou para o consumo cotidiano. O visual “narco-luxo” — correntes grossas, marcas de grife, tênis caros e estética carcerária — se impôs nas periferias urbanas e nas redes sociais. No México, cintos texanos e camisas extravagantes vestem o estereótipo do traficante rico. No Brasil e nos EUA, o trapwear funde ostentação com códigos do submundo, transformando o risco em estilo e o perigo em tendência.
A narcocultura mundial é um espelho distorcido que revela tanto o colapso de expectativas sociais quanto a glamorização de alternativas violentas à exclusão econômica. Seu apelo global reside na tensão entre marginalidade e desejo de pertencimento, poder e espetáculo, brutalidade e estilo. Não é um conceito fechado, e nem precisa ser. A narcocultura é fluida como o próprio território em que nasce. A síntese é: transformar crime em linguagem – e, de preferência, em produto.
Oruam não apenas viveu próximo desse universo. Ele resolveu extrair dele sua matéria-prima simbólica e econômica. Ao contrário da geração anterior de funkeiros e rappers, que sempre fez questão de dizer: “não sou bandido, só cresci com eles”, Oruam abandona o esforço de distinção. Ele não apenas conviveu com o crime: nasceu dele — e transformou isso em capital artístico.
Em algum lugar dentro de si, Oruam sabia que seria preso. Era esperado. Estava escrito. Quase necessário. Inevitável. Um rapper que exalta a narcocultura e nunca foi preso seria como um rockstar dos anos 70 que nunca cheirou nada. Quando ele se entrega, fecha-se o arco: o menino da favela, o filho do chefe, o sucesso digital, o confronto com o Estado. Tudo ali. Só não sabemos se foi ele quem escreveu esse roteiro ou se apenas interpretou, com brilhantismo, o papel que lhe entregaram. Preso, milionário e reconhecido internacionalmente. A contradição não é bug — é feature. E talvez, sejamos honestos, a única estratégia de acesso possível num país onde a meritocracia é uma piada contada só pelos vencedores.
Pra adensar o aspecto teatral da trama, agora surgem os projetos de “lei anti-Oruam”. Querem censurar um tipo de arte que justamente cresce da tentativa de controle. Como se bastasse passar uma lei pra impedir que a realidade seja cantada — ou explorada, ou rentabilizada. Piada tipicamente brasileira.
No fim, resta uma dúvida sincera: isso tudo é arte? É crime? É teatro? É estratégia? Ou só um sintoma cruel de um país que força seus filhos a escolherem entre o anonimato ou o escândalo? Eu não tenho a resposta. Nem quero. Não ouso. Prefiro estudar os desconfortos. Porque talvez seja esse incômodo, esse nó moral que ninguém sabe como desatar, que faz de Oruam mais do que um artista: um espelho. Um espelho capaz de devolver não só a imagem dele, mas a distorção de nós mesmos.
Há no entanto um fato do passado (ou seria um flashback?), que explode o sentida da trama no presente e que me nego a ignorar: Marcinho VP foi preso em 1996, ou seja, não havendo nova condenação, dentro das normas legais vigentes no país, tem direito a sair da cadeia em 2026. Ano que vem. Pára tudo! Esse é um dado que levanta questões: será só coincidência de um roteiro que parece seguir direitinho uma progressão dramática? Veremos mesmo o pai ganhar as ruas e trocar de lugar com o filho que pedia sua liberdade? Às vezes, eu olho esse timing todo e penso: o Brasil é mesmo um país insanamente criativo. O enredo da realidade parece mais bem roteirizado que muito filme nacional Aqui até a casualidade tem plano de carreira.
No fim, a pergunta que sobra não é se isso tudo é arte, crime ou apologia. É: por que essa história incomoda tanto? Porque, no fundo, mesmo sendo mal comportado, Oruam talvez não seja o vilão, mas o espelho. Que mesmo sujo, rachado e incômodo consegue revelar toda a moral da história: a sociedade fabricou o monstro. Agora se assusta porque ele aprendeu a falar, cantar e monetizar. Como a gente gosta de dizer, num misto todo nosso de vaidade e vergonha, o Brasil não é pra amadores. Ninguém aqui é ingênuo. Muito menos o sistema.
*Rafael Dragaud é roteirista e atualmente dirige a turnê Tempo Rei, de Gilberto Gil. Trabalhou na TV Globo por mais de 30 anos como diretor-executivo do núcleo de variedades da emissora, sendo responsável por programas como “Conversa com Bial”, “Mais Você”, “Encontro”, “É de Casa” e “Altas Horas”.