Aconteceu na sexta-feira ao final do dia, mas só na quarta-feira a comunicação social francesa deu conta: a câmara municipal de Noisy-le-Sec, na região de Seine-Saint-Denis (à entrada de Paris), anulou uma projecção de Barbie ao ar livre por “pressão” de um grupo de habitantes — quatro, dez ou 15, os relatos variam — que vêem no filme de Greta Gerwig uma “apologia da homossexualidade” que “viola a integridade da mulher”.

A “pressão” terá acontecido nestes termos, de acordo com o comunicado, publicado no site oficial do município, do presidente da câmara, Olivier Sarrabeyrouse, um militante comunista: quando os funcionários municipais montavam o grande ecrã para uma sessão gratuita, a iniciativa Ciné sous les étoiles (“Cinema debaixo das estrelas”), destinada a animar o Verão dos munícipes que não quiseram ou não puderam viajar nas suas férias, aquele grupo de indivíduos aproximou-se e ameaçou desmantelar tudo, pondo fim à sessão. O filme a projectar às 21h dessa noite fora escolhido mediante uma votação promovida pela edilidade, que recaiu na sátira feminista de Greta Gerwig, o grande blockbuster de 2023 (1,4 mil milhões de dólares de receitas).

Sarrabeyrouse diz não ter cedido a uma “censura moral”, apenas colocou em primeiro lugar a segurança dos funcionários e das famílias do bairro de Londeau — está a ser elogiado por isso, mas também criticado, cada um fazendo valer a sua agenda (e a direita, extrema ou não, tem estado activa), por ter permitido que Noisy-le Sec figure agora ao lado do Kuwait, do Líbano, da Argélia ou do Vietname, países que proibiram a difusão do filme.




Os comentadores insinuam ou explicitam que o já denominado “affaire Barbie” terá ao menos o efeito positivo de revelar a “factura cultural” que as cidades da banlieue estão a pagar, e com isso toda a França

Continuava o autarca no seu comunicado: “Não é uma primeira vez neste bairro, e isso é inadmissível porque a maioria dos habitantes aspira a beneficiar das acções da câmara municipal. Estas ameaças foram motivadas por argumentos falaciosos que traduzem o obscurantismo e o fundamentalismo instrumentalizados para fins políticos. É uma minoria muito pequena de delinquentes que, obviamente não tendo visto o filme, transformou uma simples sessão ao ar livre gratuita e aberta a todos num movimento de oposição violento.”

Precisou depois à imprensa, por exemplo ao diário Le Parisien: os seus funcionários tentaram argumentar com o grupo “de jovens”, mas o ambiente tornou-se “muito agressivo” e “como eles se sentiram em perigo” telefonaram ao presidente da câmara. Que então decidiu anular a sessão.

A “factura cultural” dos subúrbios

Os comentadores insinuam ou explicitam mesmo que o já denominado “affaire Barbie” terá ao menos o efeito positivo de revelar a “factura cultural” que as cidades dos subúrbios estão a pagar, e com isso toda a França, e como o que aconteceu é exemplar do “arroseur arrosé”, isto é, numa tradução livre, do feitiço virado contra o feiticeiro: Sarrabeyrouse ter-se-á “dobrado perante um grupo islâmico”.

É essa a tese de um site identificado como sendo de extrema-direita, Riposte Laïque, que num texto de opinião faz eco, afinal, de um debate que está a ser transversal a toda a sociedade francesa e à tensão e à revolta que nela grassa — e que a Frente Nacional está a conseguir representar sem concorrência à vista: a do “insensato acordo” da esquerda com o islão, que é “particularmente insuportável” num país laico como a França.

Esse texto de opinião, representativo de outros comentários em canais de televisão que não empunham a sua ideologia de forma tão afrontosa, começa por acusar o presidente da câmara de ter utilizado um eufemismo, o termo voyou (“delinquente”), mas nunca a palavra “islão, que, contudo”, argumentam, “é o que está por trás desta censura”. Foi essa “terminologia wokista”, acrescentam ainda, que “deu plenos poderes aos que agora ameaçam” Sarrabeyrouse e seus colaboradores, numa cidade onde “a maioria das pessoas não se interessa pela coisa cultural ou permanece fiel à cultura dos seus países de origem ou, caso dos jovens, só ouve rap”.

Quer o presidente da câmara, quer a ministra da Cultura apresentaram queixa em tribunal contra o que aconteceu na sexta-feira. “Há um ano”, declarou Rachida Dati na sua conta da rede social X, “que tomo medidas firmes contra este tipo de actos graves que se tornaram uma nova forma de delinquência”. A queixa que apresentou tipifica os actos de Noisy-le-Sec como um “entrave ao exercício da liberdade de difusão e de criação artística”.