Volta e meia aparece algum livro espantoso. Um ou outro permanece para sempre. Transforma-se em cânone, lido por muitos ou não. Há livros que chamam a atenção de uma crítica especializada (seja lá o que isso for) e são citados, discutidos, lidos sob os mais diversos prismas. Outros, simplesmente desaparecem. A história da literatura também está repleta de casos de livros que sumiram e um dia voltaram a ver a luz do sol. O mercado gosta desses casos, pois precisa disso para facilitar a propaganda. Então, some um Salman Rushdie, mas aparece um Bruno Schultz. A Montana Mágica é muito grande, então vendemos Mário e o Mágico, do mesmo autor. Bradbury passa a ser cancelado por um motivo ou outro, então descobrimos um autor russo que escreveu algo parecido com Orwell, mas antes de Orwell. Então, eu não sei o que ocorrerá com Mircea Cărtărescu no futuro próximo ou no distante, mas sei que Solenoide é um livro excepcional, desses que só surgem de tempos em tempos. Os motivos são variados.

Eu deveria dizer “desses que são publicados”, porque sabe-se lá quantas genialidades há perdidas por aí e jamais editadas e publicadas.

Ler Solenoide é um desafio “de época”, digamos assim. No universo multitelas em que vivemos e no tipo de trabalho que a maioria das pessoas tem feito (diferentemente do daquele em que se ia para casa sem contato com o trabalho até o dia seguinte), ler um livro de ~800 páginas é quase um feito. Por mais fluida que seja a leitura, vencer 800 páginas é de se admirar mesmo. Já escrevi aqui em algum momento sobre os comentários curiosos dos leitores que venceram obras longas: sentem-se realmente vencedores. Não é para menos. Ainda sobre essa questão, Cărtărescu parece saber disso muito bem, fazendo com que suas personagens transitem por universos distintos assim como o leitor de hoje pode transitar de janela em janela. É um aspecto que eu não perderia de vista.

Depois, a leitura de Solenoide, a despeito da graciosa escrita e da excelente tradução brasileira, exige do leitor atenção e certa dose de paciência. As referências são muitas, os desvios são grandes, o universo é estranho e a atmosfera oscila entre uma leve ironia e uma melancolia perturbadora. Não é, também, um livro para qualquer leitor, em particular para o leitor preguiçoso. Ler dá trabalho. Sempre foi assim. Talvez nesse parágrafo permitisse algum comentário espirituoso de Umberto Eco sobre o trabalho que o leitor tem ao ler um texto. Aqui, terá um ardoroso trabalho.

Se não escrevi neste espaço, ainda, sobre romances enciclopédicos, costumo dividi-los (provisoriamente, para facilitar a leitura) em tipos: a) os grandes ciclos, como Os Thibault (du Gard) e The Forsyte Saga (Galsworthy) dentre tantos outros; franceses e russos são pródigos em escrever livros grandes, mas não nos esqueçamos os alemães; b) os de linguagem (re)inventada, como Grande Sertão: Veredas (Rosa) e Finnegans Wake (Joyce); c) os de vertigem intertextual/interdiscursiva, como justamente Solenoide e os catataus de Thomas Pynchon e Foster Wallace ; d) outros tipos, como o Dicionário Kasar, quase um dicionário ou enciclopédia por assim dizer. E, óbvio, várias obras dentre as citadas e dentre as não citadas juntam duas ou mais letras dessa lista mental. São obras que fogem ao recurso mais comum de se contar uma história, mesmo para o leitor acostumado aos desarranjos modernos da ficção, como o vai e vem do tempo narrativo, a mudança da personagem, os universos paralelos, etc. Pense em Claude Simon ou Murakami, cada um com seu método. Solenoide é uma mescla de vários tipos de romances enciclopédicos. Caso o leitor se arrisque a seguir o conselho do próprio Mircea Cărtărescu e entender Solenoide, Theodorus e Melancolia (estes dois últimos ainda não traduzidos para o português), como uma espécie de trilogia sobre a ética humana, então terá um desafio maior, e terá de reservar muito do seu escasso tempo para ler o autor romeno.

Como não seria possível analisar a obra toda num espaço tão pequeno, gostaria de indicar alguns pontos importantes desse romance estranho: a) um bildungsroman; b) o eu como duplo; c) o eu como Outro; d) os mundos dentro do mundo; e) o macrocosmo e o microcosmo, segundo a Tábua Esmeraldina; f) a Bucareste-Brasília, melancólica e soviética

Começarei da letra “f”. Toda cidade é inventada, por assim dizer, porque surge em algum vale, ao lado de um rio, no meio do deserto. Algumas passam por processos de reinvenção, seja a Paris de Haussmann ou a Lisboa do Marquês de Pombal. Haverá aquelas grandiosas, como Dubai, a fantasia de alguém muito rico. Outras, nascem de um sonho absurdo de alguém, como Chandgarh, mas raras são como Brasília – e talvez por isso mesmo Cărtărescu cite tantas vezes a cidade, nem sempre de modo muito simpático. De fato, Brasília nasce de um lindo projeto, o tempo passa, a cidade recebe novos detalhes – como um fungo que cresce – ganha uma haste gigante, sem as características do projeto original, símbolo do militarismo (eu me refiro ao mastro da bandeira), vulgar e escura, um novo estádio, bonito, mas também fruto de uma outra forma de pensar a arquitetura, prédios espelhados e “sem arquitetura”, como a cidade toda adoecesse. Cărtărescu não fica desatento a isso. Em sua cidade, um ditador mandou construir um elefante branco, “um dos maiores edifícios do mundo” em tamanho, não altura, uma espécie de labirinto prepotente, que hoje é chamado Palácio do Parlamento. Outros autores, como Kadarés, também se utilizaram de prédios para mostrar o absurdo megalomaníaco de alguns líderes: eu me refiro ao seu A Pirâmide.

Já a edificação de Ceaușescu é tão simbólica para Bucareste e a Romênia, que se torna ela mesma uma ficção, cheia de histórias. Viverão lá muitas pessoas vivas e muitas pessoas mortas. Solenoide, a partir do nome, não tem a ver somente com leis físicas ou com um material que funciona a partir de leis que a visão humana não poder ver, ele tem a ver com arquitetura. Mas não pensemos aqui em arquitetura como um conjunto de regras, de estilo ou de modo de pensar o ambiente. A arquitetura de Solenoide, o solenoide de Cărtărescu é aquela arquitetura dos mapas mentais místicos, das cidades místicas – como uma mandala pode ser – como Angkor Vat ou Teothuacán também o são: cidades de pedra, gente, plantas, mas que não funcionam exatamente como os planos discursivos das áreas dos saberes comuns. Ou são heterotopias, no entendimento de Foucault, ou são não-lugares, como no entendimento de Marc Augé, ou, esticando um pouco mais a conversa, um “fatiche”, no sentido proposto por Bruno Latour. Essa é mais ou menos a Bucareste de Cărtărescu… ou parte dela. Não se pode ler Solenoide pensando em espaços físicos comuns. A Brasília que ele cita não é exatamente Brasília. As personagens nunca visitaram essa cidade. A Brasília citada é uma construção mental, como construções mentais são os mapas míticos citados ao longo do livro. De todo modo, precisamos de um espaço físico onde colocar andando e falando as personagens de Solenoide: trata-se de uma Bucareste-Brasília. (Para fugirmos daquele maldito e estranho lugar-comum de que tal cidade, num romance, é também personagem, digamos que a Bucareste de Cărtărescu é como uma das cidades de Calvino, espichada até romper.)

E aí, nesse espaço, cresce a personagem que conta a história, do período que vai de sua concepção (e mesmo antes dela) até algum momento impreciso da história romena. Então, teríamos um romance de formação (item “a”). Ao menos, foi o que a crítica correu a dizer após o lançamento do livro. Não discuto isso porque a simples adjetivação não diz muita coisa. Se temos uma “formação”, também temos uma formação que não se dá do modo tradicional de outras obras ditas “de formação”. Mas é tentadora a ideia de se imaginar um romance de formação do século XXI, atualizado, em que dados e modos de se construir um romance (de formação ou não) são relidos.

Nessa formação do narrador, há a presença de um duplo (“b”). Essa “condição” da personagem (a de ter havido um gêmeo) pode ser lida de muitas formas, inclusive da mais comum: houve um gêmeo e ele não sobreviveu; se sobreviveu, está por aí. Ou pode ser lido de modos mais complexos. Diz lá Sloterdijk: “todos os nascimentos são nascimentos de gêmeos: ninguém vem ao mundo desacompanhado e sem escolta”[1].  Para o filósofo alemão, cada sujeito tem uma Eurídice muda a acompanhá-lo. Talvez ela vá desaparecendo, na impossibilidade de o sujeito não poder voltar à bolha primitiva, o útero materno. Essas imagens intrauterinas, de um gêmeo, de um mistério, sonhos com pais e leite materno, etc. aparecem ao longo do livro todo. São um mistério para o leitor, mas não menos mistério para o narrador. Trata-se de um mistério para todos. Não haverá solução para o que mais se aproxima no livro de uma estrutura de romance policial. Em verdade, o livro pode ser entendido como um anti-romance-policial: há centenas ou milhares de pistas. E não há desvendamento. É aceitar ou jogar o livro fora.

Esse ser que é jogado no mundo (num “aí”) encontra o Outro (“c”), numa manifestação sensacional de vozes. Longe de mim colocar em discussão se se trata de um romance monológico ou polifônico, mas as vozes que surgem (pais, colegas de trabalho, professores – também alguns colegas de trabalho, sujeitos que seguem o narrador como um tipo de Virgílio[2] ou Beatriz, amantes, mas também livros, autores, compositores, artistas, cientistas, dentre tantos outros) vão compondo um “eu”, que só existe porque um “Outro/outro” existe. Muito interessante pensar Solenoide como um livro “de caminho”, em que toda uma filosofia própria de vida é construída em movimento.

E não há apenas vozes de sujeitos, de pessoas, de seres humanos, há mundos dentro de mundos (“d” e “f”). Numa casa comum há mundos inteiros nos subsolos, nas fábricas desativadas, há universos dentro de paredes e corredores, a partir de um buraco ou de uma luneta podem ser avistados mundos, distantes ou próximos. Talvez o discurso místico mais presente no livro seja a Tábua Esmeraldina, mas não toda ela e sim uma de suas leis: o que está acima é igual ao que está abaixo”. Essa máxima atribuída a um Hermes Trimegisto não é apenas citada, como é exemplificada literalmente, como é mencionada de leve. O universo dentro de uma casca de noz, o universo de uma célula espelhado numa galáxia, as forças internas e externas de um átomo espelhadas num sistema solar, a vida dos viventes refletida na dos mortos e por aí vai. É um romance de espelhos, portanto.

Já escrevi em outros lugares sobre Cărtărescu e já mencionei sua obsessão por detalhes e exotismos. Seus livros (haja vista a coletânea que histórias menores que fez surgir Nostalgia) são como um catálogo infinito de objetos raros, da numismática à micologia, da astrofísica à orquidologia, etc. Gosto de pensar seus escritos como um grande gabinete de curiosidades, em que cada objeto tem uma longa história a ser narrada, ao mesmo tempo em que cada objeto ilumina o outro para um (novo) jogo de sentidos.

Solenoide poderia ser a história da vida de um professo que nasceu e cresceu atrás da cortina de ferro. Ponto. Há tantas obras assim – e há boas obras assim. Mas Cărtărescu não se contenta com uma literatura pequena ou fácil. Ele é o extremo oposto das literaturas de aeroporto, das literaturas de falso discurso identitário, da escrita do universo multitelas atual. E seu movimento para uma literatura complexa, visando ou não – eu não sei porque ainda não o entrevistei, mas quero – é importante na atualidade. É incrível como tem leitores – e isso mostra um movimento também no sentido oposto: o do desejo por altas literaturas.

Há muitos modos de se abordar esse livro misterioso, e apenas indiquei alguns pontos. Ainda sobre o indivíduo jogado “no aí”, o mesmo Sloterdijk que citei acima diz: “Ao que parece, o sujeito por vir só pode se desenvolver integralmente, como o que ele próprio é, se for possível relacioná-lo com o substrato de uma vida paralela, que lhe esteja intimamente ligada (…)[3]”. Como acessar isso é um problema que talvez o narrador de Cărtărescu tente resolver. Em seu caminho, encontrará maravilhamentos, que, para o leitor, poderão parecer lisérgicos, enlouquecidos, fantasmagóricos, também extenuantes, confesso. Mas que seja por diversão. Desde os universos paralelos de Murakami, fazia tempo não lia nada tão instigante.

Se Solenoide é um livro sobre a finitude da vida, sobre o como somos pequenos diante dos mistérios que nos envolve, ou diante dos sistemas totalitários, também é um belo cântico para a beleza dessa mesma vida. Como disse um amigo muito perspicaz, um livro que já nasceu um clássico.

[1] SLOTERDIJK, Peter. Esferas 1 – Bolhas. Tradução de José O. de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 375. Volume 1: Microesferologia.

[2] O narrador remete justamente a Virgílio ao falar dos piqueteiros (p. 608 da edição brasileira).

[3] SLOTERDIJK, Peter. Esferas 1 – Bolhas. Tradução de José O. de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016. p. 359. Volume 1: Microesferologia.