Nos primeiros minutos de No Céu da Pátria Nesse Instante, documentário de Sandra Kogut (Mutum, Três Verões) que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 14, rolam os créditos iniciais enquanto se ouve a voz de uma mulher, não identificada, dizendo que não aceita participar do longa-metragem se a cineasta for “de esquerda”. “Ser contra o Bolsonaro é ser contra o Brasil”, diz ela, citando o ex-presidente.
Na época, em 2022, Bolsonaro se preparava para concorrer mais uma vez à presidência da República, em pleito que elegeria ao cargo Luiz Inácio Lula da Silva, e Kogut já tinha a intenção de registrar a disputa, que estava fadada a ser marcada por tensões. “Eu pensava assim: aconteça o que acontecer, é [um momento] muito importante, muito definidor, do que vem depois do nosso futuro”, diz a cineasta ao Estadão.
Ela, no entanto, queria fazer esse registro a partir de cidadãos comuns, não políticos de carreira: “Eu me interesso muito pelas pessoas que não estão no centro da tela, nos holofotes. A pessoa que está ali do lado, que está trabalhando para aquilo acontecer, mas ninguém está prestando atenção nela. E eu queria que o filme todo fosse com essas pessoas”.
Cena do 8 de janeiro registrada no documentário ‘No Céu da Pátria Nesse Instante’, de Sandra Kogut
Foto: Ocean Films/Divulgação / Estadão
Entre os personagens acompanhados por Sandra, há um caminhoneiro paranaense, um homem que vende toalhas estampadas pelos rostos de Bolsonaro e Lula na Paulista, uma jovem que trabalha com campanhas políticas no Rio de Janeiro e uma funcionária da Justiça Eleitoral no Pará. A única personagem de maior expressão pública é Antonia Pellegrino, roteirista, produtora e diretora da EBC que é, também, esposa de Marcelo Freixo – então candidato ao governo do Rio de Janeiro. “Ela está ali como uma pessoa que está ao lado do candidato, vivendo desse lugar”, explica Sandra.
A cineasta admite que teve dificuldades para encontrar personagens alinhados mais à direita, como expõe o áudio do começo do filme. “Foi difícil, foram muitas tentativas, mas foi possível”, diz ela, que optou pela transparência para criar a relação de confiança com os entrevistados. “Todo mundo sempre soube o que eu pensava. E eu também sempre falei: ‘Olha, eu não estou aqui para te convencer de nada. Eu tenho uma curiosidade de tentar entender como você pensa'”.
A diretora Sandra Kogut
Foto: Divulgação / Estadão
Sandra pediu a seus personagens que gravassem diários de seus cotidianos e, ao longo do processo, também foi criando e capacitando equipes ao redor deles, visto que não poderia estar presente em todos os lugares ao mesmo tempo. Cita como exemplo uma de suas personagens que vive na Ilha de Marajó. “Tinha um cara, que era da prefeitura local, que tinha uma câmera. Fui o formando para o olhar do filme. Às vezes fazia até um manual”, conta. “Isso foi criando uma coisa muito orgânica: ter pessoas em lugares diferentes pensando no filme.”
8 de janeiro e momentos de medo
Essa capilaridade permitiu a Sandra registrar momentos diversos que marcaram o processo eleitoral e seus desdobramentos, incluindo as operações da Polícia Rodoviária Federal nas estradas no dia da votação para o segundo turno e, claro, o 8 de janeiro, quando um grupo de pessoas invadiu e depredou os edifícios oficiais em torno da Praça dos Três Poderes.
“Era o primeiro domingo que eu estava em casa depois de muito tempo. Descansando, falando: ‘até que enfim um domingo tranquilo’. Mas o roteirista do Brasil não deixa ninguém descansar”, lembra Sandra. Uma personagem a avisou do que estava acontecendo e, pouco depois, um fotógrafo que havia colaborado com o filme, em Brasília, decidiu se infiltrar na multidão, usando uma camisa verde e amarela.
Entre as cenas registradas no documentário, vê-se grupos de policiais cercados por muita gente. “Acho que somos os únicos que fizemos imagens de cinema daquilo ali (…). As imagens são muito impressionantes, e acho que elas têm um valor histórico.”
A produção também infiltrou um fotógrafo em um acampamento em Brasília. “Ele foi pego e teve que engolir um cartão [de memória]”, conta a diretora, reforçando que o profissional está bem.
Em outro momento forte do documentário, a equipe é impedida de filmar em um colégio eleitoral do Rio de Janeiro, apesar de ter permissão oficial para tal – a área, nota Sandra, era dominada por milícias. “Eles foram intimidados, proibidos, ameaçados. Escolhi mostrar porque sempre que se cria uma zona cinzenta, onde o Estado não pode exercer plenamente o seu papel, abre-se espaço para um poder paralelo”.
Sandra diz que a equipe ficou “apavorada” com o acontecimento – e a sensação que se repetiu em outras ocasiões ao longo das gravações. “Houve muito medo ao fazer esse filme – porque era um momento de muito medo no País, no geral”.
A polarização e os ‘instantes’
A polarização política é, sem surpresas, um elemento importante ao longo de No Céu da Pátria Nesse Instante, já que foi fortemente presente nas eleições de 2022. O filme se encerra com uma passagem simbólica, quando um dos personagens – o caminhoneiro paranaense – diz que é como se ele e a diretora estivessem vivendo realidades distintas.
Sandra concorda com a avaliação. “É o grande desafio, e acho que não tem como a gente não olhar para isso e não tentar dar um passo nessa direção. Temos que reconstruir algum tipo de terreno comum que acabou, não? Acho que o caminho, o único que eu vejo para esse terreno comum, é o caminho humano, das relações humanas – de enxergar as pessoas por trás daquilo.”
Para a cineasta, o documentário é um passo nessa direção – e também cumpre o papel de registrar meses que, enquanto vividos, pareciam mais com uma sucessão de instantes. “Você olhava as manchetes e elas eram tão impressionantes que você esquecia que na semana anterior tinha tido outras, que tinham apagado as anteriores. Me dava a sensação de que era importante fazer um filme para tentar criar um fio”. Daí veio, inclusive, o título, emprestado de um verso do hino nacional. “Eu pensava ‘são instantes’ – e se existe alguma coisa em comum, é que todo mundo está sob o mesmo céu”, finaliza.