Com o firme bloqueio dos Estados Unidos e outras nações produtoras de petróleo, falharam as negociações para um tratado vinculativo que trace o caminho para reduzir a poluição por plástico – um problema crescente em todo o mundo, onde 460 milhões de toneladas de novos produtos de plástico são produzidos todos os anos, e 20 milhões de toneladas de lixo plástico é lançado na natureza, no mar, nos rios e em terra, e acaba por no ar, nos nossos pulmões e até órgãos reprodutivos, bem como de todos os outros seres vivos.

Os representantes de 184 países, reunidos em Genebra, na Suíça, terminaram dez dias de negociações sem acordo ou plano sobre como prosseguir daqui para a frente, após três anos de negociações, diz a Reuters. Após a sessão final, que se prolongou pela madrugada de quinta para sexta-feira, a directora do Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUA), Inger Andersen, garante que “o trabalho para conseguir um tratado dos plásticos não vai parar”, mas não se sabe ainda como, até porque a ONU enfrenta um sério problema de financiamento, destacam alguns analistas.

Os Estados que querem um tratado ambicioso, ou seja, que vá para além da gestão dos resíduos e promova também sobre uma redução da produção de plásticos, consideraram que a última proposta de texto de acordo divulgado na madrugada de sexta-feira não correspondia às expectativas – depois de o anterior ter sido considerado um recuo face ao que já tinha sido alcançado, que também não tinha avanços por aí além.

Houve uma clara divisão em dois campos: o dos produtores de plásticos – grandes petroestados e alguns países desenvolvidos – e o dos consumidores de plásticos, entre os quais se encontra a União Europeia, a Suíça, o Canadá e a grande maioria dos países no chamado Sul Global, salienta o Centro Internacional para a Legislação Ambiental (CIEL, na sigla em inglês), um think tank da área de ambiente.

Um texto inútil

“O texto não abordava as principais causas da poluição por plástico. Não tinha medidas nenhumas para reduzir a produção, nada de controlos firmes sobre químicos perigosos e não continua garantias nenhumas de que seria incentivada a reutilização, sistemas de recarga e reparação, livres de substâncias tóxicas”, critica a Fundação de Justiça Ambiental, em comunicado. “Sem medidas de controlo da produção e metas vinculativas, o tratado seria inútil para proteger as pessoas e o planeta.”

O bloqueio das conversações manteve-se, de facto, em torno de definir que um futuro tratado deve assumir o dever de reduzir o crescimento hoje incontrolável da produção de novo plástico e de impor limites ao uso de produtos químicos tóxicos na sua produção (tintas, por exemplo), que além de os tornarem perigosos para a saúde de humanos e animais, fazem com que muitas vezes sejam impossíveis de reciclar.


1
em cada 3 peixes capturados para consumo humano contém plástico



“O texto não falava de uma redução da produção de plástico, que é a medida mais eficiente e mais barata para reduzir esta forma de poluição”, frisou Melanie Bergmann ao Azul, cientista marinha que acompanha a delegação alemã às negociações.

“Reduzir é importante até porque a produção de plástico, actualmente, provoca 5,3% das emissões anuais de gases com efeito de estufa – o que é mais do que as emissões do transporte aéreo”, salientou Melanie Bergmann. “Com as projecções actuais, o continuado aumento da produção de plástico pode representar 30% das emissões do que nos resta do orçamento de carbono global”, acrescentou.

Este conceito de orçamento de carbono refere-se à quantidade máxima de dióxido de carbono, o principal gás com efeito de estufa, que podemos emitir para a atmosfera se queremos ter alguma hipótese de limitar o aquecimento global a 1,5 graus acima dos valores médios pré-industriais (ou seja, 400 mil milhões de toneladas de CO2).

A ministra francesa da Ecologia, Agnes Pannier-Runacher, disse na sessão de encerramento das negociações que estava “furiosa, porque, apesar dos esforços genuínos de muitos e dos progressos reais nas discussões, não foram obtidos resultados tangíveis”, diz a Reuters.


2000
camiões de lixo cheios de plástico são lançados em linhas de água em todo o mundo (oceanom rios, lagos). E todos os anos, 19 a 23 milhões de toneladas de lixo plástico polui ecossistemas aquáticos



Obstrução dos produtores de petróleo

Aparentemente numa alusão aos países produtores de petróleo (98% dos plásticos são produzidos com recurso a combustíveis fósseis), o delegado da Colômbia, Haendel Rodriguez, disse que o consenso tinha sido “bloqueado por um pequeno número de Estados que simplesmente não queriam um acordo”. O Financial Times comparou estas tácticas nas negociações dos plásticos com o tipo de obstrução feito por potências petrolíferas, como a Arábia Saudita, nas negociações sobre as alterações climáticas.

E isso não é feito discretamente. O Departamento de Estado norte-americano tinha dito à Reuters que a sua delegação só apoiaria um tratado para reduzir a poluição por plástico que não impusesse restrições onerosas aos produtores, para não prejudicar as empresas norte-americanas. Esta é igualmente a posição de outros grandes produtores de petróleo, como a Arábia Saudita, que tem sido identificada como uma força de bloqueio em anteriores negociações para um tratado dos plásticos.

“É melhor não haver acordo do que ficarmos com um tratado sem qualquer poder, que nos comprometeria com anos e anos de inacção, tornando-se um escudo para os poluidores para não agirem”, afirmou Christina Dixon, porta-voz para os oceanos da organização não-governamental britânica Agência de Investigação Ambiental, em comunicado.

Negociar para além da ONU?

Foi no início do século XX que os plásticos começaram a ser usados em grande escala, para substituir materiais naturais como marfim. Mas hoje são usados em tudo, literalmente tudo. Há mais plásticos na Terra do que qualquer outro material, excepto cimento, segundo a Plastic Free Foundation. Desde a década de 1950, estima-se que a humanidade já produziu 9200 milhões de toneladas de plástico e 7000 milhões tornaram-se, simplesmente, lixo.


98%
Do plástico que usamos é produzido usando combustíveis fósseis



Como se estes números não fossem suficientemente impressionantes, o que se perspectiva é que a produção aumente ainda 40% durante a próxima década. E menos de 10% do plástico que produzimos é reciclado. “Não vamos sair deste problema reciclando”, disse Inger Andersen.

Se o PNUA não quer desistir, o caminho agora não é claro. Alguns países, como o Reino Unido, afirmaram que as negociações deveriam ser retomadas, mas outros consideram que tudo descarrilou. “É muito claro que o actual processo não vai funcionar”, disse o delegado da África do Sul à Reuters.

“Estamos perante um claro falhanço do multilateralismo, com impactos devastadores a longo prazo para o nosso ambiente, saúde e futuras gerações”, comentou ainda Christina Dixon, da Agência de Investigação Ambiental. Uma simples garrafa de água de plástico pode levar 450 anos a fragmentar-se em minúsculos pedacinhos no mar, causando uma poluição que perdura séculos e se espalha como poeira de estrelas – na água, nas plantas, nos animais marinhos e em todos os seres que deles se alimentam, incluindo os humanos, durante muitas gerações.

“Os microplásticos e os materiais tóxicos estão a envenenar-nos, a provocar cancro, infertilidade, e morte, mas as grandes empresas continuam a ter lucros com a produção descontrolada de plástico. No entanto, a ciência é inquestionável, apesar de ter sido aqui menorizada. Apesar deste processo falhado, a mensagem continua a ser clara: a maior parte das pessoas e dos países exige uma mudança drástica”, comentou Giulia Carlini, advogada da CIEL.

“O PNUA e o secretariado das negociações permitiram que o processo de fosse desastroso, permitindo aos interesses da indústria envenenar as conversações e marcar o desfecho. Em Genebra, os petroestados manipularam-nos a todos em plena luz do dia, impedindo progressos significativos desejados pela maioria dos países, e alegando agir em nome das futuras gerações que estão a condenar”, afirmou, por seu lado, Delphine Levi Alvares, gestora da campanha contra os produtos petroquímicos da CIEL, citada em comunicado.

Melanie Bergmann sugeriu que se tentasse avançar através de uma via paralela: “Os países mais ambiciosos podem tentar fazer outros acordos fora do processo das Nações Unidas, como aconteceu com as negociações sobre as minas terrestres, depois do Tratado de Otava (assinado em 1997, para proibir o uso, armazenamento, produção e transferência de minas anti-pessoal, lançado por iniciativa do Canadá) que até hoje foi apoiado por mais de 160 Estados”, sugeriu. Mas países como os Estados Unidos, Rússia e China nunca o assinaram.