O Primeiro Homem Mau“, o romance de estreia da americana Miranda July, é narrado por uma esquisita.

No livro lançado originalmente em 2015, Cheryl Glickman é uma mulher solteira de 40 e poucos anos que vive sozinha em Los Angeles. Sua vida é regida por sistemas neuróticos de organização, tentando não ter louça excedente e, se possível, comer direto das panelas ou ler um livro em pé, com uma mão marcando o exato lugar na prateleira para o qual ele deve retornar.

Como o feed infinito de uma rede social, Cheryl elimina qualquer potencial fricção de sua vida. Ela mesma mal oferece resistência para que os outros a moldem como quiserem.

Ela nutre obsessões como quem cultiva uma horta. Cheryl remói por décadas a conexão que teve com um bebê aos nove anos de idade e procura em crianças aleatórias essa mesma ligação instantânea. Phillip, um dos membros do conselho da firma em que trabalha é, há anos, objeto de uma paixão platônica.

Ele é 22 anos mais velho que Cheryl e diz que as diferenças de idade não devem limitar as relações. A mulher, numa amostra de sua inadequação social, pergunta se os bebês estão incluídos nessa visão. É um flerte.

A neurose de Cheryl é tão gritante que ela mal se encaixa no mundo esquisitíssimo de Los Angeles nos anos 2010, onde sobram ruínas da contracultura meio hippie new age típica da Califórnia.

A narradora confia uma inflamação na garganta, aparentemente psicossomática, a um cromoterapeuta indicado por Phillip. A consulta, que termina com a indicação de que ela tome gotas da “essência do vermelho”, não era coberta pelo plano de saúde.

July não era nenhuma iniciante quando lançou “O Primeiro Homem Mau”. Ela já havia publicado três coletâneas de contos, além de ter uma vasta carreira como roteirista de cinema. O romance já havia saído pela Companhia das Letras, antiga editora da americana, e é republicado agora pela Amarcord à luz do sucesso de “De Quatro“, também traduzido pela poeta Bruna Beber.

O hype em torno de seus lançamentos é tamanho nos Estados Unidos que “O Primeiro Homem Mau” tinha um site dedicado a ele, em que vários objetos mencionados na história estavam à venda. A tal essência do vermelho, por exemplo, podia ser adquirida por US$ 159,48, cerca de R$ 877 nos valores de hoje.

A autora calcou sua carreira em uma leitura afiada e bem-humorada do zeitgeist, e “O Primeiro Homem Mau” é bom exemplo dessa capacidade. No romance de estreia, a construção de Cheryl como uma neurótica cômica é o começo de um mergulho numa história sobre solidão e conexão humana, que pode vir de lugares inesperados.

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A personagem constrói sua visão de si a partir do que imagina ser a visão do outro sobre ela. Isso se cristaliza com a chegada de Clee, filha de 21 anos de seus chefes, para passar uma temporada como sua hóspede.

“Era uma mulher. Tão mulher que por um instante não tive certeza do que eu era”, diz Cheryl sobre a jovem. Elas embarcam numa relação cheia de camadas, inclusive agressão física, que chacoalha o mundo da pirada Cheryl. Falar mais do que isso seria estragar a escalada de absurdo e comédia que se desenrola.

A esquisitice da narradora e de suas relações não se traduzem na forma —o romance em primeira pessoa é bastante convencional, sem grandes invenções. O humor carregado de ironia é até bem típico da literatura americana,. A aposta no absurdo, que é dobrada e triplicada ao longo do livro, mantém a história interessante.

O mérito de July, além da história viva e hilária, é convidar o leitor a acessar uma personagem aparentemente ilhada em sua loucura e, assim, capturar com maestria uma sociedade fraturada.