Título: No Sul da Macaronésia. Cabo Verde: São Vicente e Santo Antão
Autor: Ana Roque de Oliveira
Design: Jorge Carvalho
Editores: Ilhéu Editora (Mindelo) e Alma Letra (Lisboa)
Páginas: 152
Preço: 20 euros
A engenheira do ambiente Ana Roque de Oliveira aproveitou a sua estada profissional no barlavento caboverdiano, entre Fevereiro de 2022 e Janeiro de 2024, para fotografar e escrever sobre o que ali viu e sentiu, daí resultando este foto-livro que se configura como roteiro sentimental das ilhas de São Vicente e Santo Antão, onde uma leveza humana “gentil e corajosa” (são palavras da autora) se conjuga — ou será ajusta? — admiravelmente com a secura paisagística e climática, desafiando o entendimento de quem chega. No Sul da Macaronésia. Cabo Verde: São Vicente e Santo Antão, importa sabê-lo, segue-se a Os Dias em Tete, em que deu conta da sua experiência moçambicana decorrida em 2009-12 (edição Lápis de Memória, 2012, 152 pp.), e este fluxo contínuo deve ser considerado, tanto mais que nos dois roteiros os escritos que acompanham os registos visuais coincidem como impressões com selo autobiográfico evidente (“sentimentos avulsos reflectidos em palavras e imagens”, p. 15). Os dois livros têm o mesmo número de páginas (a diferença de oito é irrelevante); dir-se-ia quase feitos pelo mesmo molde.
Ana Roque falou de insularidade em Tete (“não é uma ilha, geograficamente falando, mas é, de facto, uma ilha” por carência de abastecimentos, p. 69), porém, a condição insular sobressai, inconfundível, como traço profundo da antropologia caboverdiana — pois ali o oceano é limite próximo e ao mesmo tempo desígnio, sonho e oxigénio vital, como em toda a Macaronésia do título. Em São Vicente, barcos de pesca de considerável porte num estaleiro de doca seca, ou uma praia “polvilhada de barcos que descansam”, dão sinal do isolamento geográfico, enquanto em Santo Antão são as altas cumeadas a afastar ao máximo os naturais do fio do horizonte. “É a aridez parda, em toda a sua vastidão e todo o seu silêncio, que nos toca”, escreve na primeira das suas notas, e além disso, “os habitantes de Mindelo coabitam com as sombras do passado”, as das velhas casas, lojas, armazéns e palacetes — hoje bastante corróidos —, do tempo antigo, quando foi um entreposto carvoeiro essencial para a navegação no Atlântico Sul.
Nemésio, em viagem para o Brasil nos anos 50, escreveu admirável crónica sobre o que ali viu, mas essa e tantas outras reminiscências literárias — excepção feita a Cap-Vert. Notes atlantiques de Jean-Yves Loude, “uma pérola!” de 1997 (p. 56) — não ocupam as lentes da autora, imersa na observação directa e em contactos pessoais que de imediato a desarmam pela empatia, denotando um modo peculiar de ser e viver: “punho com punho num suave toque, logo pousados nos respectivos corações», em jeito de cumprimento caboverdiano” (p. 147). Pinturas murais, desfiles domingueiros de Mandinga, de origem incerta, e um pequeno concurso entre carros alegóricos carnavalescos seduzem a “fotógrafa amadora” (sic) em visita, a quem a Kola San Jon — festa que celebra São João Baptista, padroeiro de Cabo Verde — ofereceu a oportunidade de uma das imagens mais carismáticas deste livro (p. 79), a da corrida dançada de homens-barco na Ribeira de São Julião, até à capela do Santo, no Mindelo, num mimético movimento ondulante, seguidos de estridentes tamboreiros e coloridas coladeiras. Em Ribeira do Calhau, Ana Roque foi encontrar Manuel Silveira, um antigo operário emigrante em Portugal, a cuidar “com muito esmero” de um quadrado de terra com “renques meticulosamente alinhados”, para ouvir dele que a agricultura possível não interessa aos jovens do país, que «não querem trabalhar” (p. 82). Atenta à construção tradicional em pedra — como nas moçambicanos Matundo e Capanga havia notado com especial interesse o fabrico artesanal de tijolos —, parou num vale para registar sarandas de pedra miúda trazida pelo aluvião das chuvas, e mais adiante, em Cruz de Lameirão, pequeno povoado a caminho do Monte Verde, dependente do camião-cisterna que abastece o fontanário de água desalinizada. “Mindelo prevaleceu. Mas os que hoje vivem fora dos limites da cidade estão ainda reféns da chegada dos autotanques que, esforçada e ininterruptamente, sobem às povoações ou circundam a ilha, alimentando os fontanários” (p. 98). Os bidões cheios são levados à cabeça pelas mulheres; um homem costura à máquina num recanto de rua.
Chegamos a Santo Antão, sem que Roque distinga o fim do seu portefólio vicentino. São as fotografias que nos indicam o transbordo feito. A paisagem da ilha é deslumbrante pela orografia singularíssima, o verde que desponta e o nevoeiro que por vezes filtra os amplos cenários naturais em declive. Casas em chapa ou de pedra com telhado de colmo são quase sempre meros abrigos algures na imensidão de escarpas, desfiladeiros e “vales assombrosamente profundos” (p. 117). A Estrada da Corda, em basalto, que atravessa desde os anos 1960 Santo Antão duma ponta à outra, do Porto Novo até à Ribeira Grande, é uma linha orientadora na paisagem, “triplo êxtase”, e o horizonte “está vivo, eternamente mutável” (p. 107). Tal magnanimidade, porém, leva Ana Roque a prestar atenção ao ínfimo natural, como louva-deus numa haste floral, a borboleta que suga uma flor ou o tufo de algodão que se solta da cápsula (algo que não havia feito na ilha em frente), mas também na humildade na gente, “linha de cerzir” a narrativa da longa história ilhoa, “quando uma paisagem ainda mais intacta existia” (p. 117). Magnífica, a reluzente flamboiã (Delonix regia) da p. 142. A sageza do pescador que aguarda, paciente, a onda que vai fazer entrar o seu bote em segurança no porto da Ponta do Sol, nas agitadas águas da baía Boca da Pistola, é uma outra prova quotidiana de que os caboverdianos foram e são grandes homens de mar, na velha baleação e não só. E também bons pastores de cabras, como os do Monte Verde vicentino (v. pp. 149-50). A diáspora também está bem presente no encontro com os Cabral, na serra de Santo Antão, que já não sabem bem — porque distantes, e eles tão isolados — quantos netos e bisnetos têm.
A água foi, é e será um grande problema, ou o maior tesouro — e aquela canção de Cesária Évora num belo dueto com Caetano Veloso (o poema é de Amílcar Cabral), bem poderia ser recordada por Ana Roque de Oliveira, quando, em homenagem à extraordinária cantora caboverdiana, conclui o livro fotografando o mural que Vilhs escavou a berbequim em 10 metros de parede no Mindelo, em 2019. Os de São Vicente dependeram de Santo Antão para terem “água de beber”: “era a boa água de Vascónia transportada em pequenos barcos e mais tarde em “vaporins d’água”, vendida no Mindelo, à beira da baía de Porto Grande” (p. 98).
Um muito simpático foto-livro de louvor a Cabo Verde, que com pleno agrado se conservará na estante ao lado dos de José Manuel Rodrigues, Inês Gonçalves e José Afonso Furtado — e do tristemente pouco lido, esquecido ou obliterado A Ilha do Fogo e as suas Erupções de Orlando Ribeiro (1954; 1997).