Numa nova e importante descoberta, que já dura há quase uma década, investigadores da Harvard Medical School dizem ter encontrado uma chave que pode desvendar muitos dos mistérios da doença de Alzheimer e do envelhecimento do cérebro – o humilde metal lítio.
O lítio é mais conhecido pela medicina como um estabilizador de humor administrado a pessoas com perturbação bipolar e depressão. Foi aprovado pelo regulador norte-americano, a Food and Drug Administration, em 1970, mas foi utilizado pelos médicos para tratar perturbações do humor quase um século antes.
Agora, pela primeira vez, os investigadores demonstraram que o lítio está naturalmente presente no organismo em pequenas quantidades e que as células necessitam dele para funcionar normalmente – tal como a vitamina C ou o ferro. Parece também desempenhar um papel fundamental na manutenção da saúde do cérebro.
Numa série de experiências publicadas recentemente na revista Nature, os investigadores das universidades norte-americanas de Harvard e Rush descobriram que a redução do lítio na dieta de ratinhos normais fazia com que os seus cérebros desenvolvessem inflamação e alterações associadas ao envelhecimento acelerado.
Em ratos criados especialmente para desenvolverem o mesmo tipo de alterações cerebrais que os humanos com doença de Alzheimer, uma dieta pobre em lítio acelerou a acumulação de proteínas pegajosas que formam placas e emaranhados no cérebro, características da doença. Também acelerou a perda de memória.
No entanto, a manutenção de níveis normais de lítio nos ratinhos à medida que envelheciam protegeu-os das alterações cerebrais associadas à doença de Alzheimer.
Se a investigação futura confirmar os resultados, poderá abrir a porta a novos tratamentos e testes de diagnóstico para a doença de Alzheimer, que afeta cerca de 6,7 milhões de idosos nos Estados Unidos, de acordo com os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA.
Uma teoria unificadora da doença de Alzheimer
A investigação fornece uma teoria unificadora que ajuda a explicar muitas das peças do puzzle que os cientistas têm vindo a tentar encaixar há décadas.
“É um potencial candidato para um mecanismo comum que conduz à degeneração multissistémica do cérebro que precede a demência”, argumenta Bruce Yankner, professor de genética na Harvard Medical School, que liderou o estudo. “Será precisa muito mais ciência para determinar se esta é uma via comum… ou uma de várias vias” para a doença de Alzheimer, acrescenta. “Os dados são muito intrigantes.”
Num editorial publicado na Nature, Ashley Bush, neurocientista que dirige o Melbourne Dementia Research Center da Universidade de Melbourne, na Austrália, afirma que os investigadores “apresentaram provas irrefutáveis de que o lítio tem, de facto, um papel fisiológico e que o envelhecimento normal pode prejudicar a regulação dos níveis de lítio no cérebro”. O investigador não participou no estudo.
Um exame minucioso de tecidos cerebrais humanos e animais, juntamente com investigações genéticas, encontrou o mecanismo que parece estar em jogo: as placas beta-amiloides – os depósitos pegajosos que entopem o cérebro dos doentes de Alzheimer – ligam-se ao lítio e retêm-no, incluindo o tipo que está normalmente presente no organismo, bem como a forma habitualmente prescrita. Esta ligação esgota o lítio disponível para as células vizinhas, incluindo os importantes removedores conhecidos como microglia.
Quando o cérebro está saudável e a funcionar normalmente, as micróglias são gestores de resíduos, eliminando a beta-amiloide antes que esta se acumule e possa causar danos. Nas experiências da equipa, as micróglias dos cérebros de ratos com deficiência de lítio mostraram uma capacidade reduzida de varrer e decompor a beta-amiloide.
Yankner acredita que isto cria uma espiral descendente. A acumulação de beta-amiloide absorve cada vez mais lítio, prejudicando ainda mais a capacidade do cérebro de o eliminar.
Ele e os seus colegas testaram diferentes compostos de lítio e encontraram um – o orotato de lítio – que não se liga à beta-amiloide.
Quando deram orotato de lítio a ratinhos com sinais de Alzheimer no cérebro, estas alterações inverteram-se: as placas de beta-amiloide e os emaranhados de tau que estavam a sufocar os centros de memória do cérebro foram reduzidos. Os ratos tratados com lítio voltaram a ser capazes de navegar em labirintos e aprender a identificar novos objetos, enquanto os que receberam placebos não mostraram qualquer alteração nos seus défices de memória e pensamento.
Não tente fazer isto em casa
Na sua forma natural, o lítio é um elemento, um metal macio, branco-prateado, que se combina facilmente com outros elementos para formar compostos e sais. Está naturalmente presente no ambiente, incluindo nos alimentos e na água.
Os cientistas nunca souberam exatamente como funciona para melhorar o humor – apenas que funciona. A fórmula original do refrigerante 7Up incluía lítio – chamava-se 7Up Lithiated Lemon Soda – e era promovida como uma cura para a ressaca e um estimulante do humor “para uso hospitalar ou doméstico”. Algumas fontes termais conhecidas por conterem água mineral repleta de lítio tornaram-se destinos de bem-estar procurados pelos seus poderes curativos.
Nas grandes doses utilizadas para tratar perturbações do humor, o lítio “é um medicamento que conhecemos muito bem e também sabemos que é um medicamento perigoso, especialmente para as pessoas mais velhas. As overdoses são fáceis”, alerta Kostas Lyketsos, que dirige o Centro de Tratamento de Memória e Alzheimer na universidade Johns Hopkins. “Pode estar a tomar uma dose estável e não ter efeitos secundários, mas se ficar muito desidratado ao sol quente, torna-se tóxico.”
Tem de ser monitorizado de perto porque pode danificar os rins, especialmente quando tomado em combinação com outros medicamentos como os anti-inflamatórios não esteroides como o ibuprofeno.
“Haverá um futuro em que o lítio, numa dose muito baixa, possa complementar o que parece ter-se perdido? É possível. Como é que se prova isso? Não sei”, diz Lyketsos, que não esteve envolvido na investigação. Esse será o trabalho de estudos futuros.
Embora a ciência seja empolgante, “isto ainda é muito inicial”, considera Lyketsos.
O lítio é um metal macio, branco-prateado, que está naturalmente presente nos alimentos e na água. Carla Gottgens/Bloomberg/Getty Images
As quantidades normais de lítio no nosso organismo e as concentrações administradas aos ratinhos no novo estudo são pequenas – cerca de 1000 vezes inferiores às doses administradas para tratar a perturbação bipolar, refere Yankner. Os testes efetuados em ratos aos quais foram administradas doses baixas de orotato de lítio não revelaram sinais de danos.
É encorajador, diz Yankner, mas não significa que as pessoas devam tentar tomar suplementos de lítio por conta própria.
“Um rato não é um ser humano. Ninguém deve tomar nada baseado apenas em estudos com ratos”, avisa Yankner.
“Os dados sobre o tratamento com lítio que temos são em ratos e têm de ser reproduzidos em humanos. Precisamos de encontrar a dose certa em humanos”, acrescenta.
Yankner espera que os ensaios de toxicidade com sais de lítio comecem em breve. Nem ele nem nenhum dos seus coautores têm qualquer interesse financeiro no resultado da investigação, assegura.
O National Institutes of Health (NIH) dos Estados Unidos foi o principal financiador do estudo, juntamente com subsídios de fundações privadas.
“O apoio dos NIH foi absolutamente fundamental para este trabalho”, sublinha Yankner.
Provas do papel do lítio no envelhecimento
A nova pesquisa corrobora estudos anteriores que sugerem que o lítio pode ser importante para a doença de Alzheimer. Um grande estudo dinamarquês publicado em 2017 descobriu que pessoas com níveis mais altos de lítio na água potável tinham menos probabilidade de serem diagnosticadas com demência em comparação com aquelas cuja água da torneira continha níveis naturalmente mais baixos de lítio. Outro grande estudo publicado em 2022 no Reino Unido concluiu que as pessoas a quem foi prescrito lítio tinham cerca de metade da probabilidade de serem diagnosticadas com Alzheimer do que as pessoas de um grupo de controlo, o que sugere um efeito protetor do medicamento.
Mas o uso do lítio em psiquiatria fez com que ele se tornasse um tipo de terapia, observa Yankner. Ninguém se apercebeu de que poderia ser importante para a fisiologia normal do organismo.
Isso aconteceu em parte porque as quantidades de lítio que normalmente circulam no corpo são tão pequenas que não podiam ser quantificadas até recentemente. Yankner e a sua equipa tiveram de adaptar uma nova tecnologia para o medir.
Na primeira fase da investigação, os cientistas analisaram o tecido cerebral e o sangue de doentes idosos recolhidos pelo banco de cérebros da Universidade de Rush para detetar níveis vestigiais de 27 metais. Alguns dos pacientes não tinham qualquer historial de problemas de memória, enquanto outros apresentavam um declínio precoce da memória e uma doença de Alzheimer pronunciada. Embora não tenha havido alterações nos níveis da maioria dos metais medidos, o lítio foi uma exceção. Os níveis de lítio eram consistentemente mais baixos em pacientes com défice cognitivo ligeiro ou Alzheimer, em comparação com os que tinham uma função cerebral normal. Os cérebros dos doentes de Alzheimer também apresentavam níveis mais elevados de zinco e níveis mais baixos de cobre, algo que os cientistas já tinham observado anteriormente.
A descoberta consistente de níveis mais baixos de lítio nos cérebros de pessoas com perda de memória foi uma prova de fogo, diz Yankner.
“No início, francamente, estávamos céticos em relação ao resultado porque não era esperado”, assume Yankner.
Mas o resultado manteve-se mesmo quando verificaram amostras de outros bancos de cérebros do Hospital Geral de Massachusetts e das universidades de Duke e Washington.
“Queríamos saber se esta diminuição do lítio era biologicamente significativa, por isso criámos um protocolo experimental em que podíamos retirar seletivamente o lítio da dieta dos ratos e ver o que acontecia”, conta Yankner.
Quando alimentaram os ratos com uma dieta pobre em lítio, reduzindo os seus níveis naturais em 50%, os seus cérebros desenvolveram rapidamente características da doença de Alzheimer.
“Os neurónios começaram a degenerar. As células imunitárias do cérebro ficaram loucas em termos de aumento da inflamação e pior função de manutenção dos neurónios à sua volta, parecendo-se mais com um doente de Alzheimer avançado”, indica Yankner.
A equipa também descobriu que os perfis de expressão genética dos ratinhos com deficiência de lítio e das pessoas com doença de Alzheimer eram muito semelhantes.
Os investigadores começaram então a analisar a forma como esta queda do lítio poderia ocorrer. Yankner explica que, nas fases iniciais, há uma diminuição da absorção de lítio do sangue para o cérebro. Ainda não se sabe exatamente como ou porque é que isso acontece, mas é provável que seja devido a uma série de fatores, incluindo a redução da ingestão alimentar, bem como a fatores genéticos e ambientais.
A principal fonte de lítio para a maioria das pessoas é a sua dieta. Alguns dos alimentos que contêm mais lítio são os vegetais de folha verde, os frutos secos, as leguminosas e algumas especiarias como a curcuma e os cominhos. Algumas águas minerais também são fontes ricas.
Por outras palavras, Yankner afirma que muitos dos alimentos que já provaram ser saudáveis e reduzir o risco de demência podem ser benéficos devido ao seu teor de lítio.
“Muitas vezes descobrimos na ciência que as coisas podem ter um efeito, e pensamos que sabemos exatamente porquê, mas depois acabamos por estar completamente errados sobre o motivo.”