Essa campanha está a destruir “sistematicamente a saúde, o bem-estar e o tecido social” em Gaza, escreve a organização de defesa dos Direitos Humanos, após ter entrevistado 19 palestinianos de Gaza que vivem em campos de deslocados e dois membros do pessoal médico que tratam crianças que sofrem de desnutrição.
O Exército e o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel, contactados pela France-Presse, não avançaram com qualquer explicação sobre a acusação da Amnistia Internacional.
Para a ONG, os depoimentos recolhidos confirmam que “a combinação mortal de fome e doença não é uma consequência infeliz das operações militares israelitas” em Gaza.
“É o resultado intencional de planos e políticas que Israel concebeu e implementou, nos últimos 22 meses, para infligir deliberadamente aos palestinianos de Gaza condições de vida calculadas para causar a sua destruição física — o que faz parte integrante do genocídio em curso de Israel contra os palestinianos em Gaza”, acrescenta a Amnistia Internacional.A organização defende que Telavive deve levantar de
forma imediata e incondicional o bloqueio alimentar e promover um
cessar-fogo sustentado.
“O impacto do bloqueio israelita e o genocídio em curso sobre civis, especialmente crianças, pessoas com deficiência, pessoas com doenças crônicas, idosos e mulheres grávidas e lactantes, é catastrófico e não pode ser desfeito simplesmente aumentando o número de camiões de ajuda humanitária ou restaurando os lançamentos aéreos de ajuda performativos, ineficazes e perigosos”.
Para a Amnistia Internacional, “as unidades de saúde devem ser equipadas com os suprimentos e equipamentos necessários para seu funcionamento”.
A ONG avança ainda que a 17 de agosto o Ministério da Saúde de Gaza registou a morte de 110 crianças por complicações relacionadas com a desnutrição.
“Das 747 mulheres grávidas e lactantes que a Save the Children examinou nas suas clínicas durante a primeira quinzena de julho, 323 (43 por cento) estavam desnutridas”.
Além disso, “os danos mentais da fome, incluindo trauma, culpa e vergonha, também são partilhados por mulheres grávidas entrevistadas pela Amnistia Internacional”. Num alerta publicado a 29 de julho de 2025, a
Classificação Integrada de Fases de Segurança Alimentar (IPC) declarou
que os limiares de fome foram atingidos para o consumo de alimentos na
maior parte de Gaza, concluindo que o pior cenário de fome já está a
concretizar-se e o número de pessoas, incluindo crianças, a morrer de
fome continuará a aumentar.
Essa realidade alarmante foi refletida em dados coligidos pelo Nutrition Cluster, segundo os quais quase 13 mil casos de internamentos por desnutrição aguda para tratamento entre crianças foram registados em julho, o maior número mensal desde outubro de 2023. Destes, pelo menos 2.800 (22 por cento) foram casos de desnutrição aguda grave.
“As autoridades israelitas agravaram ainda mais as condições desumanas, continuando a obstruir o trabalho da maioria das principais organizações humanitárias e agências da ONU em Gaza, rejeitando repetidamente os seus pedidos de envio de ajuda vital para Gaza. Essas restrições arbitrárias foram acompanhadas pela introdução de novas regras para o registo de ONG internacionais, que, se implementadas, proibirão totalmente essas organizações de operar no Território Palestino Ocupado (TPO)”, acrescenta a nota da Amnistia Internacional.
“A maioria das famílias em Gaza está além do limite. Elas já esgotaram os escassos recursos que tinham e dependem inteiramente da ajuda humanitária. As restrições que as autoridades israelenses impõem ao trabalho das principais organizações humanitárias e as suas ameaças de bani-las efetivamente isolam essas famílias da sua única fonte de subsistência”, sublinha o documento.
Em abril, a Amnistia Internacional acusou as autoridades israelitas de cometerem um “genocídio em direto” em Gaza, alegações consideradas “mentiras infundadas” pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros israelita.
O Cogat, órgão do Ministério da Defesa de Israel que gere os assuntos civis nos Territórios Palestinos Ocupados, considerou, a12 de agosto, que não existia “nenhum sinal de fenómeno de desnutrição generalizada” na Faixa de Gaza, refutando os números do movimento islâmico palestiniano Hamas sobre mortes por desnutrição.
Desde o início da guerra desencadeada a 7 de outubro de 2023 por um ataque sem precedentes do Hamas ao território israelita, Israel sitiou em Gaza 2,4 milhões de palestinianos, aos quais impôs no início de março um bloqueio humanitário total, posteriormente atenuado em maio e novamente no final de julho, face às críticas internacionais. Segundo o Hamas, desde o início do conflito já morreram mais de 60 mil pessoas na Faixa de Gaza.
O território palestiniano, totalmente dependente da ajuda humanitária, está ameaçado por uma “fome generalizada”, segundo a ONU, que apela a uma ajuda em larga escala.
“Não importa que sejam crianças”
O ex-chefe dos serviços secretos israelitas afirmou que devem morrer 50 palestinianos por cada vítima do 7 de outubro. “Não importa que sejam crianças”, afirmou Aharon Haliva em comentários gravados, transmitidos pela estação televisiva israelita Channel 12, considerando “necessário” o número de mortos.
Ao jornal britânico The Guardian, que teve acesso às gravações, Haliva asseverou que o número de mortos em Gaza, que calcula em mais de 50 mil, é “necessário” como “mensagem para as gerações futuras” de palestinianos.
“Eles precisam de uma Nakba de vez em quando para sentirem o preço”, acrescentou, referindo-se à expulsão em massa de mais de 700 mil palestinianos das suas casas e terras após a criação de Israel, em 1948. Nakba significa catástrofe em árabe.Grande parte dos dirigentes e dos meios de
comunicação social israelitas tem utilizado uma retórica genocida em
relação aos palestinianos desde os ataques do Hamas em 7 de outubro,
descrevendo-os como “animais humanos”, afirmando que “não há inocentes”
em Gaza e apelando à destruição total de Gaza e à sua limpeza étnica.
No entanto, a descrição de Haliva de uma campanha de assassinatos em massa, incluindo crianças, foi invulgarmente direta no que toca a uma punição coletiva de civis, o que é ilegal ao abrigo do Direito Internacional.
Haliva, que deixou o cargo em abril de 2024, também pareceu apoiar os números de vítimas compilados pelas autoridades de saúde em Gaza, que os funcionários israelitas atacam regularmente como propaganda. Estes números provaram ser fiáveis em conflitos anteriores.
Segundo o Channel 12, as conversas, sem data, foram gravadas “nos últimos meses”. O número de mortos por ataques israelitas, segundo o Ministério da Saúde de Gaza, ultrapassou os 50 mil em março e subiu recentemente para mais de 60 mil.“O facto de já existirem 50 mil mortos em Gaza é
necessário e exigido para as gerações futuras”, afirmou nos comentários
da emissão. “Por tudo o que aconteceu a 7 de outubro, por cada pessoa
que morreu a 7 de outubro, têm de morrer 50 palestinianos. Não importa
agora se são crianças”.
O Channel 12 não esclareceu como obteve as gravações ou com quem Haliva estava a falar. O jornal israelita Haaretz descreveu as gravações como um formato que permitiu ao oficial reformado “dar uma entrevista (…) sem ser efetivamente entrevistado”.
Os comentários de Haliva sobre os assassínios em massa de civis palestinianos não fizeram manchete noutros meios de comunicação social israelitas.
Entre os israelitas, Haliva é visto como um crítico centrista do atual Governo e dos seus ministros de extrema-direita, como Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir – como o próprio general observou, de resto, nos comentários transmitidos.
c/ agências