No dia em que completaria 97 anos, a 6 de março de 2024, Gabriel García Márquez regressou às livrarias com um livro que ele próprio não queria que víssemos. Vemo-nos em agosto” chega-nos como um segredo que se revela, como um ato de amor e, ao mesmo tempo, de traição, por parte dos filhos. É, talvez, a despedida mais nua e crua de um autor que fez da memória a sua matéria-prima e da solidão um património universal.

CNN Portugal

Ana Magdalena Bach, a protagonista, é uma mulher de 46 anos com rotinas sólidas: todos os anos, no dia 16 de agosto, visita a campa da mãe numa ilha. A viagem repete-se como se de um ritual se tratasse: o mesmo ferry, o mesmo táxi, a mesma florista e o mesmo hotel. Algo previsível e confortável. Até que um encontro casual quebra essa previsibilidade e a faz descobrir em si uma mulher que nunca se permitiu ser. Desejo, culpa, frustração e um certo humor atravessam a narrativa, breve, mas intensa como uma tarde de verão.

“Era o único lugar solitário onde não podia sentir-se só.”

Ao ler, Ana compreende as múltiplas versões que uma mulher pode conter dentro de si: acreditar que a juventude dura para sempre, mas que às vezes, precisamos de nos despedir-se de uma para que outra nasça. Encontra-se nela um espelho para o futuro, uma advertência e uma ternura.

Existe também a coragem de reconhecer uma certa compreensão do vulgar: gestos rotineiros, encontros apressados e descobrir o que não é óbvio. Ana, ao trair a rotina, não só encontra o desconhecido, mas também se oferece a ele. O retrato de alguém que podemos não nos identificar, mas que ao ler devemos respeitar.

O romance, escrito a partir de várias versões deixadas pelo autor antes de a doença lhe turvar a memória, tem uma força estranha: não é o García Márquez dos grandes épicos, mas também não é um esboço desleixado. É diferente dos típicos romances que nos acolhem e fazem sonhar. Em vez disso, convida-nos a pensar, a refletir e a sentir de forma direta e concreta.

“A memória é ao mesmo tempo a minha matéria-prima e a minha ferramenta. Sem ela não há nada.” 

A escrita, sempre visual e detalhista, faz-nos quase sentir a brisa quente da ilha, ver as roupas da protagonista, ouvir os diálogos, sentindo-nos quase na pele de Ana Magdalena. Facto é que García Márquez não escreveu para todos, nem para agradar a todos. Escreveu para quem se arrisca a compreender, mesmo julgando.

Assim, é possível concluir que a literatura também é feita de ousadias e de fragilidades e Vemo-nos em agosto é isso mesmo. É um livro que não se esquece, porque nos convida a despedirmo-nos da mulher que fomos, para nos entregarmos àquela que ainda não sabemos ser.

Foi uma despedida das várias versões que Ana foi em todos os verões, assim como de todas as versões que García Márquez nos habituou. Ainda bem que os filhos não o destruíram. Porque muitas vezes os livros só sobrevivem se lhes dermos a coragem de se mostrarem como são.