Em 17 de abril de 1961, Rubem Braga denunciou no GLOBO um “crime de morte” a que assistira da varanda. A vítima, que “devia ter vinte ou vinte e cinco anos”, era uma “bela árvore de copa redonda, no terreno junto à praia, onde havia antes uma casinha verde”. Inconformado, ele lamentou não ser bêbado ou louco o suficiente para protestar nem “um grande rei para castigar o crime e salvar uma árvore junto ao mar”. Entre 1959 e 1961, o capixaba assinou a coluna “A crônica de Rubem Braga”, onde esbanjava o lirismo, o bom humor e olhar atencioso às miudezas da vida que lhe renderam o apelido de “sabiá da crônica”.
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Intitulada “A árvore”, a denúncia de Rubem Braga brilha na antologia “Um século em cem crônicas”, que reúne textos de 32 campeões da prosa nacional que escreveram para o GLOBO, de João Ubaldo Ribeiro a Jô Soares, de Nelson Rodrigues a Fernanda Young (todos eles transformados em caricaturas por Paulo Cavalcante). Organizado pela editora Maria Amélia Mello e pela historiadora Cláudia Mesquita, o livro é parte das celebrações do centenário do jornal e será lançado amanhã, às 19h, na Livraria Travessa do Leblon, no Rio.
— Poucos jornais deram tanto espaço aos cronistas como o GLOBO, e o livro mostra isso. É uma seleção de craques, jogando do jeito que a função exige, cada um ao seu modo. O sentimentalismo do Antonio Maria, a autoironia do Rubem Braga, a Zona Norte do Aldir Blanc, as memórias do Mauro Rasi, a delicadeza do approach feminino de Elsie Lessa, Maria Julieta Drummond de Andrade, Marisa Raja Gabaglia, Danuza Leão e Fernanda Young — descreve o cronista do GLOBO Joaquim Ferreira dos Santos, que assina o prefácio do livro e conversa com as organizadoras no lançamento. — O principal mandamento do cronista é ir na contramão da objetividade do resto do jornal e abusar da subjetividade. A crônica é o império do eu; mas, por favor, exiba o umbigo com estilo.
A centena de textos que compõe o livro está disposta cronologicamente. No primeiro, “Smoking banhado de sol”, de 1935, Henrique Pongetti descreve como o Sol (“pó do ouro que todos esperam”) saudou quem havia varado a noite no réveillon do Copacabana Palace. No último, “As mesmas palavras para dizer outra coisa”, datado de junho de 2024, Cacá Diegues conta que escreveu o roteiro de “Joana Francesa” inspirado nas histórias do avô.
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— O critério que nós estabelecemos para escolher as crônicas foi o prazer da leitura. Ao cronista, tudo é permitido, menos entediar o leitor — afirma Maria Amélia Mello, ressaltando o frescor que os textos mantêm mesmo décadas depois de escritos. — As boas crônicas adormecem no jornal e amanhecem nos livros.
A antologia ressalta tanto nomes da chamada era de ouro da crônica brasileira, que prosperou entre os anos 1940 e 1960 e consagrou nomes como Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Antônio Maria, como autores mais associados a outros gêneros literários, como Orígenes Lessa, mais conhecido por sua obra infantojuvenil, e o poeta amazônico Thiago de Mello. Guimarães Rosa também publicou crônicas no GLOBO. Durante o ano de 1961, assinou a coluna “Guimarães Rosa conta”, onde surgiram textos depois reaproveitados nos livros “Primeiras histórias” e “Ave, palavra”.
Alguns autores, lembra Cláudia Mesquita, começaram no jornal como críticos de cinema (como Henrique Pongetti e José Lins do Rego) ou de música (caso de Sérgio Cabral). Mas a crítica “era só um pretexto para fazer literatura”, diz ela.
Cinco dos 32 cronistas da coletânea são mulheres: Elsie Lessa, Maria Julieta Drummond de Andrade, Marisa Raja Gabaglia, Danuza Leão e Fernanda Young. A primeira foi a colunista mais longeva do jornal: assinou a “Globetrotter” ininterruptamente de 1952 a 2000. Nos anos 1970, a irreverente Marisa Raja Gabaglia se consagrou como a cronista da contracultura no Rio de Janeiro.
O que não falta no volume são exemplos da “crônica carioca”, dos botequins suburbanos cantados por Aldir Blanc à Copacabana que Antonio Callado chamou de “admirável oficina de corpos empenhados na destruição dos cânones da beleza antiga, zona pagã comprimida entre o mar e o azulejo”. Os cronistas davam tanta notícia do Rio quanto os repórteres do jornal.
— As crônicas contam a história da cidade, mas sem discursar, sem se prender ao monumental dos fatos — diz Joaquim Ferreira dos Santos, acrescentando que “a vida do cronista no Rio de Janeiro já foi mais fácil. — Os pioneiros saíam das redações, no Centro, e depois de meia hora batendo perna voltavam à máquina de escrever com algum tema: um modismo, um encontro, uma cena num café, uma conversa entreouvida. Passear hoje pelo Rio em busca de assunto pode levar o cronista para as páginas policiais, correndo atrás de ladrão de celular ou atropelado por uma bicicleta elétrica.