Quando me apresento, costumo repetir a seguinte frase: “Sou algarvio, nascido e criado em Lagos”. Repito-a, não por me orgulhar extraordinariamente por o ser, mas por esperar que, ao repeti-la, ela possa acabar por ressoar-me de igual forma impetuosa como quando alguém de outra parte de Portugal se apresenta.
Conheço muito bem este nosso país. Costumava visitar os mais remotos cantos de Portugal com a família, explorando-os nos seus detalhes, desde as velas de Felgueiras até aos cestos de Nandufe. Percorria as diversas paisagens que constroem Portugal e sobre as quais foi possível florescer a nossa identidade portuguesa. Portugal é geografia, mas é sobretudo cultura.
Sinto, muitas vezes, não ser tão português quanto os outros. Sinto isto, não por ter ascendência germânica, mas justamente por ser algarvio. Por ser de uma região que foi alvo de uma reconfiguração económica alheia à vontade local, e que se teve de habituar à implementação de um novo ritmo de vida, adaptado aos que estão de passagem. Construíram-se tantos hotéis, tantos complexos de apartamentos de luxo, tantas estradas, tantos restaurantes, a uma velocidade tremenda. Despejaram-se as cegonhas, que outrora faziam ninhos nas chaminés industriais, quando estas ruíram para darem lugar a um urbanismo ostentoso.
O contínuo investimento no turismo e na construção urbana com efeitos especulativos permanece o grande gerador da economia local, mas também funciona como “penso rápido” das políticas públicas falhadas na região. Continua a existir desigualdade na distribuição dos lucros, pois parte da receita nem sequer permanece na região do Algarve. Mantém-se a precariedade em vários níveis sociais, aumentando a discrepância no desenvolvimento económico e social, assim como no próprio tipo de turismo que se procura promover.
Já não reconheço muitas partes do Algarve. Aliás, muitas das construções, pouco harmoniosas nas suas dimensões, repugnam-me. Os cantos algarvios estão a ser substituídos. Os típicos terraços delimitados por muros de cal imperfeitos, nos quais duas cadeiras queimadas pelo sol se repousam ao lado de uma figueira – ou até mesmo os prédios amarelos, que, apesar de serem mais modernos, dão continuidade ao siglário algarvio – estão a ser substituídos. Instaurou-se uma confusão urbanística e passámos a ser somente definidos pelo sol.
Enquanto no Norte, cada batida de um chocalho parece reforçar continuamente a identidade e a presença da cultura, no Algarve ela surge em retalhos, como sendo remotamente esquecida. A grande maioria da população algarvia habita na zona litoral – ou seja, perto da costa -, mas a sua tradição refugia-se cada vez mais para a Serra, longe dela.
Sempre que volto ao Algarve, vejo que ele foi intensamente reconfigurado e não o reconheço. Como é possível? Esta transformação é feita a tal velocidade que se enfraqueceram, de forma gradual, os laços dos cidadãos com o território, empurrando-os para as margens da cidade. Instalou-se uma crença desesperada. A crença de que, para reforçar-se o vínculo, é preciso aceitar o papel nos trabalhos de serviço – nos bastidores – pois, no teatro da cidade, é-lhes apenas concedido o esforço, e não o palco.
O Algarve é uma região que procura reencontrar a sua identidade. É preciso pensar-se nos que lá vivem, nos que o criam e que resistem no meio da mudança. Por muito que o sol deva ser valorizado, é também necessário pensar-se nos que vivem à sombra desta região. Que seja para eles também.