Luciana Constantino | Agência FAPESP – Em meio às discussões preparatórias para a COP30, que envolvem inclusive temas ligados à saúde, uma pesquisa recém-publicada contribui para o entendimento da relação entre a destruição da floresta e o avanço da malária na Amazônia Legal. O estudo mostra que a cobertura florestal intermediária, com 50% de desmatamento, aumenta os casos da doença em humanos e as taxas de infecção por mosquito Anopheles, com abundância do subgênero Nyssorhynchus.
De acordo com o trabalho, a associação persistente entre desmate e doença reforça a necessidade de intervenções direcionadas, integrando o controle de vetores com a conservação florestal. A malária é transmitida por meio da picada da fêmea do mosquito do gênero Anopheles infectada por uma ou mais espécies de protozoário Plasmodium. O mosquito anofelino é conhecido como carapanã, muriçoca, sovela e bicuda.
Os pesquisadores realizaram coletas de campo em 40 pontos de Cruzeiro do Sul, localizado em uma fronteira de desmatamento no Acre. Juntamente com outras cidades no Vale do Rio Juruá, o município é considerado um hotspot persistente de incidência de malária – as intervenções na última década não foram capazes de interromper os ciclos endêmicos.
As áreas selecionadas representam um gradiente de cobertura florestal e níveis de desmatamento. Os achados foram divulgados na revista científica Acta Tropica.
“Na pesquisa detectamos que o maior risco de transmissão de malária ocorre quando há uma proporção de 50% de mata nativa próxima a locais de moradia, assentamentos ou núcleos populacionais. O risco também é alto quando a vegetação é fragmentada, permitindo maior contato de vetores que estão na floresta com humanos. Por outro lado, ele diminui se o desmatamento é completo, porque o ambiente fica inóspito para o vetor, ou quando a floresta é restaurada para níveis acima de 70%, mostrando a importância da conservação e da restauração”, diz o biólogo Gabriel Laporta, autor correspondente do artigo.
Para avaliar como a estrutura da paisagem influencia a transmissão, foram usados dados de mosquitos vetores – abundância e taxas de infecção – e casos de malária em humanos. “Achamos extremamente importante coletar não somente os vetores, mas também as amostras de sangue dos moradores. Testamos a infectividade no grupo dos vetores e dos hospedeiros. Esse padrão de risco de transmissão no meio do gradiente de cobertura florestal apareceu nos dois conjuntos”, explica o biólogo à Agência FAPESP.
Professor do Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC (FMABC), Laporta pesquisa malária há mais de dez anos. A FAPESP apoiou o estudo por meio de auxílio Jovem Pesquisador (21/06669-6), de auxílio no âmbito da chamada Amazônia+10 (22/10392-2) e de uma bolsa de doutorado (23/08053-8).
No projeto apoiado, os cientistas buscam compreender melhor os ciclos persistentes de transmissão de malária, de doença de Chagas e de leishmaniose cutânea frente a um cenário de desmatamento. Para isso, trabalham com integração de modelagem de geoprocessamento e tecnologias de sensoriamento remoto aliadas a informações de incidência de parasitas humanos e níveis de infecção de mosquitos por Plasmodium vivax e P. falciparum, Trypanosoma spp. e Leishmania spp.. No total, serão cinco anos de acompanhamento, com previsão de término em 2027.
Risco de transmissão diminui se o desmatamento é completo, porque o ambiente fica inóspito para o vetor, ou quando a floresta é restaurada para níveis acima de 70% (gráfico: Gabriel Laporta et al.)
Passo a passo da ciência
Em 2021, um grupo de cientistas, incluindo Laporta, publicou artigo na Scientific Reports com achados de um estudo longitudinal espaço-temporal baseado em dados coletados em assentamentos rurais na Amazônia já mostrando maior risco de malária associado a desmatamento.
Foram detectados dois picos para a ocorrência de vetores: o primeiro por Plasmodium vivax, Nyssorhynchus darlingi e vetores locais, registrado entre 10 e 12 anos após o início dos assentamentos. No segundo, entre 36 e 38 anos depois, os vetores locais não apareceram, com prevalência dos outros dois tipos (leia o artigo aqui: www.nature.com/articles/s41598-021-85890-3).
Além disso, em outra pesquisa ficou demonstrado que mudanças nas paisagens da Amazônia diminuíram a diversidade geral de mosquitos, permitindo que Nyssorhynchus darlingi se tornasse dominante (saiba mais aqui: https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0245087).
Combate constante
Além do desmatamento, entre as principais causas do avanço de malária em países endêmicos, como o Brasil, estão mudanças nos tipos de mosquitos prevalentes, perda de biodiversidade, avanço de grandes projetos de infraestrutura que modificam paisagens naturais, como usinas hidrelétricas, atividades de mineração e urbanização.
As mudanças climáticas têm agravado o quadro, já que o aumento das temperaturas, aliado a chuvas e secas intensas, cria condições mais favoráveis à proliferação de mosquitos. Sistemas de vigilância em saúde, atenção a populações mais vulneráveis e respostas rápidas a desastres naturais estão entre as medidas que podem ser adotadas para enfrentar esses casos.
Reconhecendo que a crise climática impacta diretamente a saúde das populações e a necessidade de integrar as duas agendas, a presidência da COP30, que acontece em novembro em Belém (PA), incluiu saúde nos dias temáticos.
“As questões ambientais e de saúde pública parecem distantes, mas estão muito conectadas. Uma das formas de intervenção em áreas como as que estudamos seria promover iniciativas sustentáveis que ofereçam renda para os moradores. A floresta conservada tem produtos com valor, mas eles tendem a ser menos lucrativos do que abrir terras para pastagens ou uso agrícola. O pagamento por serviços ecossistêmicos, por meio do mercado de carbono, por exemplo, pode ser uma alternativa. Uma conferência como a COP30, que reúne governantes e tomadores de decisão, pode ser uma oportunidade para discutir como iremos substituir o modus operandi de hoje”, comenta Laporta.
Considerada um problema de saúde pública global, a malária é endêmica nos nove Estados da Amazônia Legal, que concentraram 138 mil dos 142 mil casos registrados no país em 2024, de acordo com o Ministério da Saúde.
O Brasil, por meio do Plano Nacional de Eliminação da Malária, se comprometeu a chegar a 2030 com menos de 14 mil casos e alcançar o objetivo final até 2035.
No estudo, os pesquisadores alertam que a eliminação da malária requer não apenas tratamentos eficazes, mas também estratégias abrangentes de controle de vetores. Apontam que uma solução potencial é tornar o ambiente menos favorável aos vetores anofelinos, mantendo a biodiversidade em áreas florestais conservadas. “A combinação desses fatores ecológicos com protocolos de tratamento aprimorados pode alavancar os esforços de eliminação da malária”, escrevem no artigo.
No mundo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que foram 263 milhões de casos e 597 mil mortes pela doença em 2023, sendo que cerca de 95% dos óbitos ocorreram em países do continente africano, onde ainda há pouco acesso a serviços de prevenção, detecção e tratamento.
A prevenção individual é feita por meio do uso de mosquiteiros e telas que protegem de mosquitos, além de repelente. Medidas coletivas incluem obras de saneamento e aterramento de criadouros do vetor, com melhoria das condições de moradia de populações vulneráveis.
A doença provoca febre, calafrios, tremores, sudorese e dor de cabeça, podendo levar, em casos graves, a convulsões, hemorragias e alteração da consciência. Normalmente, o paciente recebe tratamento em regime ambulatorial fornecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
O artigo Intermediate forest cover and malaria risk in an Amazon deforestation frontier pode ser lido em: www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0001706X25002281.