Muito obrigado, Presidente Trump, pelo seu importantíssimo contributo (graxa), ficamos todos agradecidos (graxa) e só V. Ex.ª teria esta capacidade única de aproximar as partes desavindas (graxa, graxa e graxa). A graxa, de tão excessiva, é quase cómica – mas, no fim, o elogio a Trump e a gratidão serão sinceros (por Azeredo Lopes, num artigo em que cita os Ministry – um grupo de rock industrial – e no qual lembra Carl Schmitt – que, “para quem não o tenha presente, foi um jurista alemão, dos mais brilhantes que o séc. XX produziu, e foi também um canalha, membro convicto do partido nazi”)
1. Os factos extraordinários dos últimos dias têm contribuído para consolidar a ideia de um Donald Trump omnisciente, omnipresente e omnipotente. Desde que iniciou o segundo mandato, tem sido possível ver elementos desta construção, que agora tem um dos seus momentos altos desde que, a 15 de agosto, reuniu no Alasca com o Presidente russo, Vladimir Putin. É um poder absoluto e quantas vezes cruel relativamente aos imigrantes ilegais e à sua expulsão em massa, é a vingança implacável relativamente a quem, dentro do poder judicial ou fora dele, participou nos diferentes processos contra si dirigidos (e que resultaram, aliás, em condenações), são as várias guerras comerciais que foi desencadeando contra algumas das principais potências, da China à União Europeia, passando pela Índia, ou a imposição de uma fasquia colossal de 5% em despesas em Defesa aos países da NATO, não esquecendo os bombardeamentos “obliteradores” contra o Irão, a legitimação dada a Israel para a comissão dos crimes internacionais que lhe apeteçam em Gaza ou na Cisjordânia, o delinear da limpeza étnica em Gaza para depois lançar a nova “Riviera” na região, a paz com o Iémen, a intervenção que diz que teve para fazer cessar os conflitos entre Índia e Paquistão, Egito e Etiópia, Camboja e Tailândia, Israel e Irão, Arménia e Azerbaijão, ou Ruanda e República Democrática do Congo, ou a intervenção direta em processos judiciais em terceiros países, com ameaças e sanções contra os juízes e outros atores do aparelho judicial (Brasil e o processo que envolve Jair Bolsonaro; Israel e os vários processos contra Bibi Netanyahu), ou o assalto aos tribunais internacionais (com destaque para o TPI), ou a intervenção direta em apoio de partidos de extrema-direita em processos eleitorais na Europa, e por aí adiante. A enumeração deixa sem fôlego, mas é muito incompleta, e reflete pouco mais de meio ano de poder.
2. Esta interpretação imperial dos poderes de que está investido, quantas vezes com o respetivo exercício determinado por razões pessoais ou assim por si interpretadas (que o diga o Brasil) apanhou de surpresa e a destempo, pela envergadura e brutalidade, a maioria dos atores internacionais. Necessariamente, e sem serem necessárias especiais elucubrações sistémicas, Donald Trump ataca aquela que considera ser uma ordem velha e caduca, ultrapassada porque juridicamente sustentada, contrária, no seu entender (do ponto de vista das regras que se lhe aplicam e do modelo de organização das relações internacionais), aos interesses fundamentais dos Estados Unidos. Esta ideia está profundamente arreigada na sua forma de pensar e de agir, em que se intui o pressuposto de uma superioridade americana sobre todos os outros povos. Não só uma superioridade de poder (por ora, indiscutível), mas superioridade mesmo, como povo com um desígnio superior que, por força de sucessivos Presidentes tíbios (com um ódio de estimação por Obama), se tem visto privado do seu estatuto de domínio internacional incontestado e que agora ele vai trazer de novo para a grandeza. A forma como Trump e o seu séquito descrevem os europeus, e da mesma sorte reverenciam a autoridade viril do agressor Vladimir Putin ou do sanguinário Netanyahu, diz muito sobre a reinterpretação em curso da ordem internacional e dos seus novos ícones. O esquisso desta nova arquitetura que nos tem sido dada a provar desde janeiro assenta, por conseguinte, na tentativa de reinstalação de um modelo de tipo feudal tardio (com um monarca rodeado pelos três estamentos, todos submissos) ou, sendo possível, de reconstituição contemporânea de um Sacro Império Americano – um Sacro Trumpério, portanto, com alcance potencialmente universal.
3. Trump, é verdade, nunca escondeu ao que vinha. Já durante o primeiro mandato, que alguns tentaram descrever como uma vírgula irritante da História política norte-americana (não era), as suas intervenções sucessivas e, nomeadamente, perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, foram meridianamente claras. O interesse nacional prevalecia sobre o internacional, mesmo que este estivesse sustentado em normas imperativas. Assim, só para dar um exemplo, Trump podia romper com uma tradição de muitas décadas e reconhecer, porque sim, a anexação israelita dos Montes Golã. Ora, se os europeus sempre recusaram dar passos desse tipo, nem por isso deixaram de utilizar o jargão que, perto do juridiquês mais básico, deixava de falar em direito internacional e integrava-o, apenas como uma das variáveis possíveis num processo de decisão, numa geringonça batizada de forma trôpega em “ordem internacional baseada em regras”. Esse tem sido o nosso fado: falta de vontade política para realizar o desígnio da autonomia estratégica perante o nosso amigo do outro lado do Atlântico, preguiça política, preguiça na procura real de uma estratégia comum em matéria de segurança e defesa, ação timorata quando somos encostados às cordas. Trump, por ora, lê-nos como quase ninguém: a sua é a linguagem do poder pelo poder, para roubar o título da obra notável de Alexandre Franco de Sá, já com uns anos, mas mais do que atual.
4. A História, graças a Deus, não acaba aqui. Não é que a procissão ainda vá no adro, uma vez que, infelizmente, as ações brutais que Trump tem levado a cabo no plano interno contêm já, para muitos, alguns aspetos “irreversíveis” (a palavra é colocada entre aspas). Por outro lado, no plano internacional, estamos entrados num estado de guerra permanente. O termo não é meu, foi criado em 2013 pelos Ministry (um grupo de rock industrial de Chicago). Neste quadro, procura refletir a polarização internacional, a destruição de um princípio geral de cooperação negociada e de aproximação entre diferentes ou o ataque direto a regimes fundamentais do direito internacional, desde o direito dos tratados à proibição do uso da força ou ao direito internacional humanitário. Significa, por outro lado, um regresso à teoria fundamental de Carl Schmitt sobre a essência da política, construída em torno da oposição permanente, hobbesiana e pessimista, entre amizade-inimizade, até que o inimigo seja eliminado (logo a seguir se recriando novas relações desta natureza). Tudo em torno desta relação, toda a ação política determinada por ela. Perante nós, portanto, uma de duas: ou é inimigo, e tem de ser destruído sem piedade, ou é amigo, e tem de ser protegido, quaisquer que sejam as circunstâncias. Schmitt, para quem não o tenha presente, foi um jurista alemão, dos mais brilhantes que o séc. XX produziu. Foi também um canalha, membro convicto do partido nazi desde 1933 e antissemita grotesco. E não deixa de ser interessante verificar como o período de grande polarização que vivemos, no interior dos Estados como, depois, nas relações entre estes, vai beber (certamente que, o mais das vezes, de forma não consciente) à doutrina Schmittiana, que tanto fundamento deu ao nazismo. Que fique claro, não se está a estabelecer um paralelismo entre o atual inquilino da Casa Branca e o infame Adolfo. Trata-se, apenas, de verificar como a construção da Política por Carl Schmitt tem hoje, outra vez, muitos e muitos seguidores e putativos praticantes.
5. Não foi Trump, por outro lado, o primeiro impulsionador deste retrocesso, embora a sua ação política defina como pilares os fiéis e os incréus, aqueles que se protegem e aqueloutros que podem e devem ser destruídos, no sentido mais figurado como noutros bem mais prosaicos. Assim, por exemplo, quando Trump diz a Netanyahu para fazer o que tiver de ser feito (em Gaza), é na oposição atrás referida que deve procurar-se o fundamento da legitimação para a violência sem limites. O inimigo, por isso, é desumanizado, não está protegido pelo Direito (coisa para fracos) e depende da decisão de vida ou de morte tomada pelo líder. Isso explica, por exemplo, que quase em tom de chacota Donald Trump se tivesse dirigido ao líder iraniano, Khamenei, dizendo-lhe que só estava vivo porque, com generosidade, essa tinha sido a sua decisão (o polegar virado para cima) perante a vontade israelita de o eliminar.
6. De uma outra forma, repete-se, estes processos foram-se desenvolvendo com outros atores, num passado recente ou um pouco menos recente. Putin é um praticante muito competente desta abordagem do poder político, não sendo nada surpreendente o fascínio, a admiração, que suscita a Trump. Mas, quando por cá nesta Europa se vão desenvolvendo reinterpretações dos quadros mentais aplicáveis às relações internacionais, não se fica muito longe daquilo que se vai criticando ao atual Presidente dos Estados Unidos. O ovo da serpente já está entre nós há bastante tempo, e os europeus são bons aprendizes de feiticeiro. Aderiu-se gulosamente à oposição entre “ocidente alargado” e “sul global”, como se esta fosse a senda inelutável que passaria a regular a nossa interpretação das alianças e modelos de cooperação internacional. Inventaram-se as democracias “iliberais”, tanto para justificar ataques diretos à democracia enquanto tal como para justificar por que razão agíamos de forma diferente consoante os casos e a proximidade geográfica do objeto de análise (por exemplo, “democracias iliberais” dentro da UE passam a ser, fora dela, autocracias ou, para empregar um termo agora na moda, “autocracias eleitorais”). E mesmo Joe Biden, quando lançou a sua cruzada, a guerra santa das democracias contra as autocracias, acabou por aderir a esta simplificação ad absurdum da realidade, por tornar evidente o duplo standard e, finalmente, por agregar e reforçar como bloco aqueles que se sentem ameaçados por terem sido incluídos na categoria dos “maus”.
7. Falemos agora, como caso prático, dos tais dias extraordinários a que se faz referência no início do texto e que têm como centralidade a vontade de Trump, o imperador Trump, pôr termo à guerra na Ucrânia. A recordatória poderá parecer ridícula, mas, ainda assim, aqui vai. Há guerra na Ucrânia desde fevereiro de 2022, ou até desde 2014, porque a Rússia ocupou e anexou territórios ucranianos (a Crimeia e partes do leste do País) e, mais tarde, lançou uma invasão militar em larga escala contra aquele País, com a destruição tremenda do País e um número de mortos e feridos incalculável, entre combatentes dos dois lados e a população civil. Nestas questões, há sempre quem dê um peso dominante ao poder (corrige-se: em relação ao poder dos “nossos”), num fascínio quase erótico que resvala, com frequência, para clichés como o sofrível e bem conhecido “força do direito e direito da força”. A melhor forma de enfrentar estas tentações é insistir num facto que mesmo os mais empedernidos apoiantes de Putin aceitarão, mesmo que a contragosto: a Ucrânia foi invadida, a Rússia foi, e é, o invasor, ponto final.
8. Clarificado o ponto de partida, ficam a força e o poder completamente arredados quando de discussões sobre a tentativa de acabar este conflito cruento que dura há três anos e meio? Não, pela natureza das coisas humanas, e correndo o risco da afirmação vácua, direito e poder dialogam em permanência. Mas as violações do Direito, sobretudo estas que, como a proibição da agressão, ocupam um lugar de preeminência no sistema jurídico internacional, não são apagadas por factos de poder, não são justificadas com o correr dos dias, dos meses ou dos anos. Até ao fim dos tempos, a Rússia será o agressor de 2022. É por isso difícil de aceitar que, desde o início deste seu segundo mandato, Trump tenha procurado redefinir a realidade, apresentando em alturas sucessivas os seus factos “alternativos”, para utilizar o termo lançado por Kellyanne Conway, uma sua conselheira logo no início do primeiro mandato que ficou célebre como grande praticante da pós-verdade (que é o termo suave para a mentira mais escandalosa).
9. De forma imperial, Trump compreendia as razões de Putin; e era a Ucrânia que, com a obsessão de não ser escrava, impedia o fim das hostilidades. Aliás, o líder russo não era verdadeiramente o agressor, porque, fosse Trump o Presidente, a guerra nunca teria sequer começado. A culpa era, por isso, de Joe Biden, como aliás a anexação da Crimeia, em 2014, só tinha acontecido porque…sim, adivinharam, Barack Obama era Presidente. “This is not our war”, diz agora Marco Rubio. Leia-se: esta é a guerra de Joe Biden, e só por ser Grande é que Donald Trump aceita envolver-se, entregar-se de forma desinteressada à causa do restabelecimento da paz (com o Nobel da Paz no horizonte).
10. É sabido que Trump gosta de ser adulado, mais do que respeitado ou gostado. A palavra-chave do seu segundo mandato não é, por isso, poder, autoridade, tarifas ou guerra: é “graxa”. Que o diga Volodymir Zelensky, o Presidente da Ucrânia, que em fevereiro esqueceu duas coisas fundamentais quando foi a Washington: era preciso estar permanentemente a agradecer ao novíssimo Imperador a sua maravilhosa e deslumbrante ação, e era preciso deixar claro que quem pode, manda; e quem deve, obedece, mesmo que para as coisas mais abjetas (por exemplo, ouvir que a guerra não acabava por sua exclusiva responsabilidade). Pelo caminho, até a farpela verde que o Presidente costuma usar foi objeto de ataque direto, tudo vindo a culminar na expulsão da Casa Branca da delegação ucraniana: a porta da rua é a serventia da casa.
11. Meses depois, agora em agosto de 2025, outra vez na Sala Oval, outra vez os mesmos atores. Zelensky foi de fato, e a sua rebeldia terá sido não usar gravata; e disse tantas vezes obrigado que até cansou. É o que é, o mesmo fizeram os líderes europeus (França, Finlândia, Itália, Alemanha, Reino Unido) que participaram nas conversações promovidas por Trump. Duas coisas sobressaem: a graxa, de tão excessiva, é quase cómica, mas, e este é o ponto mais relevante, o destinatário adora. E assim vamos andando aplicando-se a velha máxima do palhaço Tiririca quando se apresentou a eleições: pior do que está não fica.
12. E o encontro com Putin? E as reuniões de ontem? A primeira coisa de que deve ser dada nota é a de que Trump pode ter dado um contributo de algum relevo para nos irmos encaminhando para o fim do conflito, embora quase sempre por razões tortuosas. A reunião com Putin, é certo, fica marcada, mais uma vez, pela leitura estética do acontecimento. Aquelas duas aeronaves enormes na mesma pista (o Air Force One é de certeza maior), o tapete vermelho para ambos, Trump à espera de Putin a bater palmas, Putin a acelerar em direção a Trump, a intimidade entre ambos, a partilha da mesma viatura, tudo contribuiu para que se tratasse de um momento inesquecível. Trump, como sempre, mais trapalhão, como se percebeu na conferência de imprensa conjunta e, como de costume, a mudar de opinião a uma velocidade estonteante. O cessar-fogo, disse nos dias que antecederam Anchorage, era obrigatório, e a reunião acabaria ao fim de 2, 3, 4 ou 5 minutos se, com a sua tal infinita argúcia, o Presidente americano percebesse que o seu congénere russo não estava disposto a tal. Não havendo cessar-fogo, as consequências seriam graves para Putin e, em geral, para a Rússia. Excelente, terão dito os mais crédulos, desta feita há outra vez um alinhamento entre Ucrânia (a vítima), os Estados Unidos e os europeus.
13. Não tinham sequer passado duzentos minutos de reunião, e nada disso. O cessar-fogo já era, tratava-se agora – como sempre foi a posição russa – de um acordo compreensivo e alargado de paz. Mais uma semana, e Trump negará que alguma vez tenha defendido um qualquer cessar-fogo.
14. O mesmo aconteceu com os ultimatos a Putin. Trump anunciava estar a começar a estar zangado, depois estava zangado, depois estava zangadíssimo, e a certa altura zangadérrimo. Pois, e? Vieram a seguir os ultimatos, antecipando consequências “graves” para a Rússia e a sua economia, nomeadamente, através das hoje célebres sanções “secundárias”, que poderiam atingir os 500%. A coisa afigurava-se um pouco estranha, considerando por exemplo que, na brutal guerra das tarifas em abril, a Rússia (!) tinha escapado entre os pingos da chuva. Primeiro ultimato, a terminar algures no início de setembro. Depois, perdendo a paciência e inspirado na tática seguida contra o Irão, o encurtamento do prazo, para 8 de agosto. Chega a data fatídica, e anuncia-se o encontro no Alasca. Sanções, primárias ou secundárias? Nenhumas, enquanto os europeus, grandes seguidores da doutrina Kallas, preparam o incrível 19.º pacote de sanções.
15. Perante o novíssimo Imperador, os europeus têm aprendido muito, às vezes à sua custa, como aconteceu com a NATO e com o acordo comercial doloroso que se viram coagidos a aceitar. Pagamos um preço, e muito elevado, por termos feito de cigarra durante demasiado tempo, e por acreditarmos que os Estados Unidos, apesar de um pouco cansados de nós, sempre diriam, parafraseando o diálogo entre Bogart e a enorme Ingrid Bergman no filme Casablanca, “We’ll always have Europe”. Pela positiva, no entanto, os europeus estão a construir o seu caminho mais depressa do que desde a criação daquela que é hoje a União Europeia, embora ainda não consigam ser olhados como “entidade” com a autoridade necessária para uma verdadeira mediação. Porém, como estão a demonstrar neste processo recentíssimo de negociações “ucranianas”, têm agora a noção de duas coisas muito importantes. A primeira é a de que Trump adora dinheiro e, ainda mais, poder dizer nas redes que sacou bilhões a este ou àquele. Não é muito típico, e que o digam os europeus, que já estão a pagar quase toda a ajuda à Ucrânia (e, pelo caminho, a comprarem paletes de armamento aos Estados Unidos), que o diga a própria Ucrânia. Já não se trata de um “ajude-nos, é o Estado mais poderoso e estamos a ser agredidos pela Rússia”, isso é coisa de velho e do sistema anterior. Agora, outrossim, é mais um “até sei que gosta muito de Putin e, por isso, quanto tenho de pagar para ter acesso ao seu armamento?”. É menos poético, é menos jurídico e até se aproxima da coerção? É, mas é a vida. Assim se compreende o “acordo” das terras raras ucranianas, assim se explica a espantosa proposta de ontem, na Casa Branca, sobre as famosíssimas garantias de segurança. Os Estados Unidos vão participar? Vão “participar” com um pequeno incentivo de cem mil milhões de dólares, o preço a pagar para entrarem no barco. Portanto, e em síntese: europeus, é necessário gastar dinheiro, acabaram os almoços grátis. Seja, mas alguma vez terá havido almoços grátis para o que quer que seja?
16. Os europeus estão, em segundo lugar (europeus, porque haverá que incluir o cada vez mais novoeuropeu Reino Unido), a compreender as maravilhosas virtudes da resistência passiva, ou, para recorrer ao termo mais vulgar, da ronha. Acordo de paz? Muito obrigado, Presidente Trump, pelo seu importantíssimo contributo (graxa), ficamos todos agradecidos (graxa) e só V. Ex.ª teria esta capacidade única de aproximar as partes desavindas (graxa, graxa e graxa). Sucede, no entanto, que continuamos a defender a necessidade de um cessar-fogo, e que este deverá ser imediatamente aplicado depois da eventual reunião entre Zelensky e Putin, e que a pressão sobre a Rússia deve aumentar, e que continuamos a defender a integridade territorial da Ucrânia. Ou seja, sobre as cedências de território, nada, nicles. Sobre as garantias de segurança, as versões e interpretações são tantas que já ninguém sabe a quantas estamos.
17. A forma como os europeus (e, veja-se lá, até Mark Rutte) reinterpretaram a cláusula, que teria de ficar consagrada no tratado de paz a ser celebrado, do tipo do artigo 5.º do Tratado NATO, é um poema. O modo como estão a afirmar a necessidade de “boots on the ground” na Ucrânia, com contingentes europeus, outro poema é. Talvez tenhamos a barriga um pouco mole, certamente que ainda temos de fazer muito para nunca mais dependermos de outrem em questões vitais da nossa vida coletiva, e talvez tenhamos gerido mal, politicamente, o conflito, pois que destruímos todas a pontes e estamos agora numa posição muito mais reativa do que de iniciativa. Mas temos a capacidade multisecular (e muito jurídica) de impedir aquilo que não queremos, embora não saibamos como impor aquilo que consideramos ser a melhor solução. Uma coisa é certa, Putin agora tenta passar a ideia de que só não há paz por causa dos europeus, ou, como disse na conferência de imprensa no Alasca, esperemos que agora algumas capitais europeias não venham perturbar este esforço comum que (Putin e Trump) estamos a tentar relativamente à paz na Ucrânia. Putin a dizer que os europeus é que não querem a paz na Ucrânia? Estamos decerto a fazer alguma coisa bem, e isso parece confirmar-se pelas declarações ainda mais recentes do MNE russo, Sergei Lavrov, e da porta-voz do Kremlin, Maria Zakharova (por sinal, outro personagem).
18. É tempo de acabar. Se descontarmos o acessório, este processo negocial confirma várias coisas. De entre elas, chamaria a atenção apenas para duas. A primeira é a de que nunca, desde a Segunda Guerra Mundial, um líder político concentrou nas suas mãos um tal poder de facto, com uma interpretação praticamente sem limites das condições do seu exercício, em que a coisa pública se confunde com interesses privados e é profundamente influenciada, para o bem e para o mal, por relações pessoais. É ver-se, no amor e no desamor, o que foi a relação intensa entre o Presidente e Elon Musk. Trump aproxima-se, por isso, da figura do imperador, de alguém cujo poder encontra a legitimação nele próprio e que corrói os diferentes sistemas de checks and balances, aproximando-nos da autocracia. Mas também se pode reconhecer algo: nos nossos dias, ninguém que não fosse Trump teria o poder de desbloquear um conflito enquistado como o da Ucrânia. Não é pelas melhores e mais nobres razões? Talvez não, mas, no fim do dia, se for possível uma paz justa e duradoura, temos a obrigação de ser compradores. E, se for esse o caso, nem precisamos da graxa: o elogio e gratidão serão sinceros.
19. Em segundo lugar, numa nota mais positiva (mas apenas referida ao sistema internacional), a processos imperiais desta natureza sempre se segue uma reação. O mundo é demasiado aberto, competitivo e em rede, e pura e simplesmente não é possível regressar ao tempo dos Czares, de Carlos V ou de Napoleão. A adaptação já está por isso em curso, os blocos estão a reconstituir-se, e mesmo os Estados Unidos vão perceber, mais tarde ou mais cedo, que no século XXI os impérios antigos não são reconstituíveis. Ou, então, é o autor destas linhas que quer acreditar nisso.