Incêndios em Portugal

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Entre o negro das cinzas e o silêncio que tomou conta da Bio-Reserva Integral do Vale da Aveleira, na Serra da Lousã, sobressai-se uma borboleta. O fogo preservou-lhe as asas, mas não a vida. É dos poucos vestígios onde ainda há cor numa paisagem reduzida à “tristeza” e à “fragilidade”, descreve à SIC Notícias o biólogo Manuel Malva. O que foi outrora um refúgio de vida, transformou-se num “vazio”, numa “mortandade gigantesca” agora eternizada numa fotografia.

Entre o negro das cinzas e as cores de uma borboleta: o pouco que resta do “vazio” da Bio-Reserva do Vale da Aveleira

Reprodução// Manuel Malva

Um incêndio devastador consumiu, na passada sexta-feira, grande parte da Bio-Reserva Integral do Vale da Aveleira, situada na encosta norte da Serra da Lousã, no distrito de Coimbra. Manuel Malva, biólogo e vice-presidente da MilvozAssociação de Proteção e Conservação da Natureza –, revela em entrevista à SIC Notícias, que arderam entre 55 a 60 hectares de um total de 70 hectares que compõem a área total da reserva.

Reconhecida pela “elevada importância de conservação” e integrada na rede Natura 2000, a Bio-Reserva Integral do Vale da Aveleira “tem, ou tinha” (como Manuel Malva ainda hesita em afirmar), uma vegetação representativa de séculos, tornando-se um bosque raro, uma vez que são cada vez menos aqueles que conseguem resistir.

O fogo começou no dia 14 de agosto no Candal, uma aldeia de xisto no coração da Serra da Lousã, e “em poucas horas, assumiu uma dimensão e violência avassaladoras”. Ao final da manhã do dia seguinte, a Bio-Reserva já se encontrava cercada pelas chamas, “num cenário marcado por temperaturas muito elevadas e fenómenos extremos de vento”, descreve o comunicado da Milvoz.

Ainda numa primeira avaliação, foi possível perceber que se preservaram algumas das zonas mais nucleares do bosque, mas “uma percentagem muito grande, na sua totalidade, foi completamente perdida ou está severamente afetada”, lamenta o biólogo.

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Bio-Reserva Integral do Vale da Aveleira após o incêndio

Manuel Malva

Bio-Reserva Integral do Vale da Aveleira após o incêndio

Bio-Reserva Integral do Vale da Aveleira após o incêndio

Manuel Malva

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Num cenário de “verdadeira calamidade ecológica”, como descreve a associação, “grande parte dos habitats maduros sucumbiu ao fogo”, incluindo os inúmeros castanheiros centenários, o medronhal climácico, os azinhais, os adernais e parte dos bosques de azereiro.

“As dezenas de castanheiros centenários que tínhamos eram absolutamente monumentais. Eram uma das joias da Bio-Reserva. Íamos iniciar um projeto para datar algumas dessas árvores, que poderiam ter 400 ou até 500 anos, mas apesar de ainda não termos conseguimos contabilizar, perdemos a maioria”, antecipa o vise-presidente da Milvoz.

 “Foi uma mortandade gigantesca”

O fogo avançou a uma “velocidade assustadora” e “grande parte dos animais não conseguiu escapar”.

Ainda sem conseguir avançar números, o biólogo explica que, durante as visitas ao terreno, viu muitos animais “cansados, queimados ou feridos”, que terão agora de “dispersar para áreas da serra que não arderam, embora muitos provavelmente não o conseguirão fazer”.

Logo no primeiro dia em que foi à Bio-Reserva verificar os estragos do incêndio, Manuel Malva captou em fotografia uma das “tristezas” que lhe passou pelas mãos: uma borboleta morta, perdida no meio do cinzento que ainda há poucos dias tinha sido verde.

Reprodução// Manuel Malva

“É uma tristeza muito profunda caminhar numa paisagem em que tudo foi reduzido a cinzas e, de repente, encontrar uma borboleta tão singela, tão frágil, que de alguma maneira é um dos poucos elementos que resistiu ao local, além do negro e das cinzas”, descreve.

O vice-presidente da Milvoz acredita que a borboleta noturna quadripunctaria tenha morrido devido à onda de calor enquanto voava, caindo depois no solo já ardido.

“É uma tragédia que já estava anunciada, mas os culpados irão ser chamados à sua responsabilidade”

“A invasão biológica por acácias foi ignorada durante anos, e ninguém demonstrou interesse em controlar a situação quando ainda havia tempo”, aponta.

“O Estado Português acumula mais de 10 anos de incumprimento. Ao longo desse tempo deveriam ter sido implementadas medidas de gestão ativa para a preservação desta Zona Especial de Conservação e para evitar tragédias como as que acabam de acontecer”, salienta o comunicado da Milvoz.

O biólogo considera tratar-se de uma “tragédia que já estava anunciada”, sobretudo pelo “enorme desleixo” por parte das entidades estatais face à “gestão da paisagem da serra, que nunca foi feita devidamente”.

“Temos extensíssimas áreas da serra que estão cobertas por eucaliptos, por acácias, por pinhal não gerido e esse tipo de floresta é um autêntico barril de pólvora”, acrescenta em entrevista, salientando que “esta situação da Lousã é representativa de um cenário que se multiplica por toda a paisagem do Norte e Centro de Portugal”.

A solução, conclui o o vice-presidente da Milvoz, passa por atuar na base do problema: “tornar a paisagem muito mais resistente e resiliente a estas catástrofes”.

Para já, fica a sensação de “desilusão” e “vazio” naqueles que conheciam bem a Bio-Reserva Integral do Vale da Aveleira e a viram, em questão de horas, passar de um local “tão pujante de vida’ para um “cenário lunar, completamente negro”, retrata Manuel Malva.