No último mês de Julho, Hélder Malheiro e Augusto Dinis, de 37 e 44 anos, assinalaram com pompa os 50 anos da mais conhecida fuga da prisão de Alcoentre. Estes dois homens fugiram agarrados a uma corda da cadeia e acabaram por ser detidos pouco depois, recordando, uma vez mais, que há coisas que nunca mudam e que a história tem uma terrível tendência para se repetir. Brincadeiras à parte, a fuga de 2025 foi só uma amostra do que foi a grande evasão daquela prisão do concelho da Azambuja de onde escaparam, sem grandes dificuldades, 89 ex-agentes da PIDE, a 29 de Junho de 1975.

A razão da fuga? “Um ligeiro desrespeito pelos regulamentos por parte de um praça da Guarda Nacional Republicana”, escrevia então O Jornal. Se um “ligeiro” desrespeito leva à fuga de quase nove dezenas de presos, nem quero imaginar se o “descuido” fosse maior. Vá lá que os 89 ex-agentes não “deram boleia” aos outros 754 colegas que por lá cumpriam pena naquele Verão Quente, detalhava o periódico. Mas o que terá feito o culposo GNR? Alegadamente, resolveu dar um “pequeno passeio” e saiu da área de vigilância onde devia estar, nada de mais numa prisão de “alta segurança” que de alta segurança parecia então ter pouco.

Além disso, todo o recinto era vigiado, com excepção precisamente do muro que os ex-pides usaram para fugir, alegadamente porque ninguém com dois dedos de testa ia ousar escalar um muro de sete metros. Mas as previsões falharam e os engenhosos presos lembraram-se que, com paus, não só se faz uma canoa como também se constrói uma escada. Unidas as cabeceiras das camas na cela 32, lá se fizeram uns degraus suficientemente altos para permitir a fuga.

Segundo relatos da época, eram amplas as liberdades que os presos da PIDE gozavam dentro do estabelecimento prisional, com a conivência de quem por lá mandava. Nos jornais escrevia-se que “eram os presos que mandavam nos guardas prisionais” e que as celas nem sequer eram fechadas à noite, desrespeitando ordens e fazendo o que queriam: “Aquilo não é uma cadeia, aquilo é um hotel”, onde só faltava terem espaço para os presos “satisfazerem as suas necessidades sexuais”. Escrevia-se então que, “para os pides, a vida na prisão é uma festa”, onde até os altifalantes das celas estavam à sua disposição para “actividades culturais”.

Não resisto em voltar ao presente transcrevendo este parágrafo escrito há mais de meio século: “Começada a construir há 14 anos, a cadeia [de Vale de Judeus] poderá vir a ser, conforme dizem os chamados especialistas, a mais segura da Europa, mas, neste momento, tal afirmação não passa de pura fantasia. Os sofisticados sistemas de vigilância nunca funcionaram, ao contrário do que chegou a ser noticiado.” A cadeia (ainda) pode vir a tornar-se a mais segura do continente, mas não há livro de fantasia que apague o cadastro que lhe deixa a sua já longa história.

Depois da fuga, nas estradas ergueram-se barricadas pelos membros dos Comités de Defesa da Revolução (CDR). A revolta popular ganhou forma e houve quem visse nesta fuga a oportunidade de ajustar as contas com os agentes da polícia política, prometendo-lhes a justiça que, para tantos, nunca chegou. Nas rádios, quando a canção queria ser, segundo Fernando Tordo, “quase como um noticiário”, ouvia-se com letra de Ary dos Santos, o Fado de Alcoentre: “Que se passa? Então isto não é uma ameaça? Ali andou mãozinha de reaça. Deixaram fugir mais oitenta e nove…”

Entre os foragidos, 33 acabaram por ser detidos nos dias seguintes à evasão, mas ficaram por apurar as responsabilidades. Como tanta coisa neste país, a investigação prometida ficou para depois de a situação política acalmar. Depois de a situação política acalmar, já não fazia sentido investigar coisa alguma. A culpa morreu solteira sem culpados pela fuga e Vale de Judeus continuou a ser um lugar de detenção (e de outras fugas).