Bons tempos aqueles em que a arte política prefigurava alvoradas rubras. As obras engajadas haviam vencido a estética das sacristias. Onde rezas, razão. Onde bolor, ardor. Onde incenso, sensatez.
A arte revolucionária denunciava: “Os Fuzilamentos do Três de Maio”, de Goya. Mobilizava: “A Liberdade Guiando o Povo”, de Delacroix. Alicerçava a tela mais popular do século 20: “Guernica“, de Picasso.
Ela nunca foi pura, porém. Simulando entusiasmo, a estética política regredia a formas mornas para festejar chefes nefastos, fosse ele um Napoleão neoclássico ou um Stálin do realismo socialista. Eram percalços passageiros porque progresso havia e a arte avançava.
Um belo dia a ideia socialista foi para o ralo. O dinheiro dissolveu a estética, a propaganda envenenou-a, as imagens algorítmicas aplastaram corações e mentes. A arte política acabou porque a política e a arte implodiram antes.
Em que pese —e pesam toneladas— a mercantilização da vida, algo da arte política perdura nos grafites de Banksy, em pichações ferozes e até em memes. E ela está inteiraça no livro “Those Passions: On Art and Politics”, publicado há pouco lá fora.
Seu autor, T.J. Clark, é um historiador da arte raro: claro sem ser raso, erudito mas antiacadêmico, um marxista que não foi leninista nem é identitário.
Embora não seja popular —já que as artes plásticas não o são— é influente na “anglosfera”. Sua viga mestra é o modernismo, mas como acha que Bosch e Bruegel foram sua vanguarda, virou-os do avesso.
“Essas paixões”, o título do livro em português, refere-se a um poema de Percy Bysshe Shelley cujo tema é o sentimento que subsiste nos fragmentos da estátua de um faraó semissoterrada no deserto. Assim é com a arte política: o tempo a abateu, mas seus restos preservam os anseios daqueles que a puseram de pé.
Ainda que não advogue teorias, Clark parte de Hegel e Walter Benjamin. De Hegel, detém que a arte é “coisa do passado”. De Benjamin, que parece mais perto do Talmud que de “O Capital“, faz uma piada infame: “Ele é o Fabrice del Dongo no Waterloo marxista”. (Em “A Cartuxa de Parma”, Fabrice está tão tonto em Waterloo que nem nota a batalha.)
“Those Passions” começa com uma audácia: defender que os retratos de Rembrandt são arte política porque dão identidade a uma classe, a burguesia holandesa do século 17. Eles seriam “máquinas de exteriorização da subjetividade”, no sentido de Le Corbusier ao dizer que suas casas eram máquinas de morar.
Embora foquem indivíduos, os retratos pluralizam uma classe. Rembrandt fazia isso mormente por meio da sua cor predileta, o preto, esfumado em degradês infinitesimais. Rejeitava o azul de Giotto, o de Bellini e o de Vermeer por aludirem ao além —e, diz o crítico, “em Rembrandt não há céu”. O pintor admitia Deus, desde que oculto.
Num ensaio seguinte a arte política milita. É o que ocorre em “A Liberdade Guiando o Povo“, a ode de Delacroix às barricadas de 1830. Estandarte da choldra arruaceira, ela reapareceu na revolta de 1848, na Comuna de Paris e no levante dos coletes amarelos de 2018.
O quadro vem deixando de ser subversivo na medida em que a extrema direita se apropria das ideias de rebelião e liberdade. Acrescente-se que o povo de Delacroix foi imitado no assalto trumpista ao Capitólio e dos bolsonaristas aos Três Poderes.
“Those Passions” passa pelo “Esopo” Velázquez, pela “Mulher com Chapéu” de Matisse, pelo “One: Number 31” de Pollock e converge para “Guernica”, esplendor e sepultura da arte participativa.
Picasso relutou em pintá-la. Tinha razão em hesitar porque até então passara ao largo das obras em grande escala, heroicas, históricas, arrebatadas e, hélas, políticas. Para quem vinha das distorções cubistas e se refastelava em monstruosidades, “Guernica” era um desafio.
Picasso montou uma cena monocromática com mulheres terrificadas, lâmpadas cegantes e animais em pânico. O crítico volta a Aristóteles e argumenta que “Guernica” denuncia uma tragédia que por certo provoca piedade e terror, mas —eis a novidade— não é catártica. Não purga quem a vê e muito menos perdoa quem bombardeou o vilarejo republicano.
O historiador T.J. Clark pensa a crise estética pelo prisma da esquerda —que segundo ele precisaria reconhecer sua derrota e abandonar utopias. Se e quando a catástrofe vier, diz, ela forçará o surgimento de novas formas —e a arte política poderá ser uma delas, terá novamente o que dizer.
Não é o que (se) está pintando. Que arte política daria conta do massacre de Gaza?
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