Duas qualidades sobressaem na leitura do belo “Território da Luz”, romance de 1979 da japonesa Yuko Tsushima, lançado há pouco por aqui.
De cara, chama a atenção o modo como a autora dá cores extraordinárias à banalidade da rotina de sua narradora, às voltas com o trabalho como bibliotecária e a criação da filha pequena, após ter sido deixada pelo marido e se mudar para o apartamento ensolarado que dá título do livro.
O cotidiano da personagem anônima —distante de nós em tempo, lugar e cultura— vai ganhando vida, e estabelecemos com ele uma intimidade insuspeita à medida que acompanhamos episódios triviais como discussões com vizinhos, um passeio pelo parque, sonhos eróticos e/ou assustadores e reencontros tensos com o ex-marido.
Publicado originalmente de forma seriada, os capítulos funcionando como episódios-síntese do momento de transição da narradora, o romance pouco a pouco constrói uma vida bastante tangível.
Nós nos aproximamos, sim, mas sem deixar de sentir um alheamento perene, como se a personagem, ao revelar seus afetos mais comezinhos, deixasse claro que há algo de impenetrável em cada um —algo que se mostra tanto mais alheio quanto mais honesta e minuciosa é a forma como o expressamos.
A luz se espalha por todo o romance: no piso do apartamento; no céu que brilha após um explosão; nas arvores que refletem o sol; nos pequenos fogos de artifício em uma festividade; na explosão de uma fábrica. Essa luminosidade funciona também de maneira alegórica, já que os pensamentos e afetos da narradora são expostos por ela com uma clareza e objetividade que ofuscam.
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Essa luminosidade paradoxal define a segunda qualidade extraordinária do romance: com sua dicção franca e inquieta, mas sem melodrama nenhum, a narradora de Tsushima nos traz para perto sem nunca nos deixar esquecer seu isolamento brutal.
Apesar de todos podermos nos identificar com ao menos parte de suas angústias e desejos, há uma barreira entre nós e ela, ainda mais dura e interessante quando se trata da experiência de leitores brasileiros distantes quase meio século do contexto da narrativa.
Essa sensação é reforçada pela tradução de Rita Kohl, que realiza o difícil feito de dosar a coloquialidade da voz narrativa com a estranheza intrínseca tanto à distância individual quanto à cultural, que se torna parte importante da leitura. Essa tensão se dá a ver com força sobretudo nas muitas interações que a jovem mãe estabelece com chefes, amigas, mães de colegas da filha, desconhecidos, amantes.
Tsushima é mais uma de muitas autoras estrangeiras que, tendo escrito seus romances há décadas, estão agora sendo traduzidas aqui pela primeira vez. Ela vem se juntar a nomes tão interessantes e diversos quanto Alba de Céspedes e Tove Ditlevsen, em uma resposta bem-vinda à demanda do mercado por narrativas íntimas de mulheres, com o privilégio de temas como a maternidade, a sexualidade e a tensão entre a vida doméstica e a profissional.
Em “Território da Luz”, a relação da narradora com a filha, que passa de dois a três anos no decorrer dos meses narrados, é objeto das passagens mais duras e também das mais ternas. O cansaço faz suas reações às fragilidades da menina por vezes beirarem a crueldade, mas é também com ela que a jovem mãe estabelece a cumplicidade mais doce e alegre.
É arrebatador o trecho em que as duas encontram um homem bêbado caído na rua, e a menina pede que a mãe cuide do “dodói” do desconhecido.
Talvez, porém, os momentos mais definidores do romance sejam aqueles que a narradora compartilha de forma precária com personagens quase sempre anônimos, em parques, bares, ruas que nos transportam para uma Tóquio tão confusa quanto palpável.
É nesses instantes brevíssimos que ela parece se sentir mais amparada, em lampejos de reconhecimento entre solidões. Todas as passagens terminam de forma melancólica, assim como o livro, mas fica em nós a sensação de algo compartilhado, ao menos até o estreito limite do comunicável.