figura humana com hot-dog nas mãos

 

Quase um ano após seu lançamento, finalmente adquiri a versão brasileira do best-seller global “Gente ultraprocessada: por que comemos coisas que não são comida, e por que não conseguimos parar de comê-las”, de autoria do infectologista e doutor em virologia molecular Chris Van Tulleken, com prefácio de um dos criadores do sistema NOVA (utilizado para classificar os alimentos segundo seu grau de processamento), Carlos Monteiro.

Apesar de o livro estar diretamente ligado ao tema de hoje, tratarei dele em um artigo à parte, abordando seus principais pontos e possíveis problemas. Por ora, um resumo:

Tulleken questionava a hipótese de que o consumo excessivo de alimentos ultraprocessados fosse o principal responsável pelos alarmantes aumentos de obesidade e doenças crônicas não transmissíveis (como diabetes e hipertensão). Para testar essa ideia, decidiu realizar um experimento em seu próprio corpo, passando a se alimentar quase exclusivamente de ultraprocessados — uma espécie de reinvenção do Super Size Me, já comentado anteriormente aqui na RQC.

Durante dois meses, o médico seguiu duas dietas distintas e registrou, em ambos os períodos, medidas antropométricas e biomarcadores. Basicamente, ele participou de um ensaio clínico do tipo cross-over: no primeiro mês, absteve-se completamente dos ultraprocessados; no segundo, no chamado “grupo intervenção”, passou a seguir uma dieta composta por 80% de alimentos ultraprocessados.

Como vocês devem imaginar, se há prefácio do professor Carlos Monteiro na versão brasileira, Tulleken passou por maus bocados.

A análise detalhada do “experimento” fica para outro artigo. O destaque de hoje é uma pesquisa assinada por Tulleken e colaboradores célebres, como o líder do estudo e pesquisador associado do Departamento de Ciências Comportamentais e da Saúde do University College London, Samuel Dicken. Em outro trabalho, intitulado “Food consumption by degree of food processing and risk of type 2 diabetes mellitus: a prospective cohort analysis of the European Prospective Investigation into Cancer and Nutrition (EPIC)”, Dicken verificou que, a cada aumento de 10% na ingestão diária de ultraprocessados, havia um risco 17% maior de incidência de diabetes tipo 2. E a cada aumento de 10% no consumo de alimentos minimamente processados mais ingredientes culinários (como óleo, açúcar e sal) ou de alimentos processados, observou-se uma menor incidência de diabetes tipo 2 (6% e 8% de redução, respectivamente).

Apesar de o EPIC não ter recebido grande destaque na mídia, a nova pesquisa foi alvo de inúmeras matérias, tanto internacionais quanto nacionais: “Comida caseira é melhor que ultraprocessados saudáveis na perda de peso” e “Avoiding Ultraprocessed Foods Might Double Weight Loss”, sugerindo que evitar o consumo de alimentos ultraprocessados poderia dobrar a perda de peso.

Para quem acabou passando batido por esse “hype”, trata-se de uma pesquisa publicada em agosto de 2025 na Nature Medicine, sob o título “Ultraprocessed or minimally processed diets following healthy dietary guidelines on weight and cardiometabolic health: a randomized, crossover trial”. O estudo teve como objetivo comparar os efeitos na saúde entre dietas à base de alimentos minimamente processados (AMP) e alimentos ultraprocessados (AUP) que seguem as recomendações do EatWell Guide (guia alimentar do Reino Unido).

Diferentemente do sistema brasileiro, que se concentra no processamento, o EatWell Guide divide os alimentos em cinco grandes grupos: frutas e vegetais; carboidratos ricos em amido; proteínas; laticínios e derivados; óleos e gorduras. O guia também traz outras orientações, como quantidade diária de líquidos, alimentos a serem consumidos com moderação e a recomendação de sempre conferir rótulos, optando por produtos com baixo teor de gordura, açúcar e sódio.

A pesquisa avaliou tanto a variação de peso quanto desfechos cardiometabólicos, comportamentais, mentais e hormonais, além de explorar a viabilidade e a aceitabilidade da intervenção de suporte comportamental.

O estudo foi um ensaio clínico randomizado do tipo crossover 2×2: os participantes entram em um de dois grupos intervenção, depois passam por um período de “limpeza” (sem receber nenhum tratamento) e, em seguida, são integrados ao grupo oposto. O objetivo do estudo foi comparar os efeitos na saúde de dietas de oito semanas com alimentos minimamente processados (MPFs) e ultraprocessados (UPFs), seguindo as recomendações do EatWell Guide (EWG).

O desfecho primário foi a mudança porcentual de peso, enquanto os desfechos secundários incluíram medidas antropométricas, composição corporal, marcadores cardiometabólicos e parâmetros relacionados ao apetite.

O design metodológico foi o seguinte: os pacientes considerados elegíveis deveriam apresentar IMC igual ou superior a 25 (sobrepeso) e inferior a 40 (obesidade mórbida), além de consumo habitual de 50% ou mais de calorias provenientes de UPFs. Dos 135 candidatos, 80 foram excluídos por não atenderem aos critérios estabelecidos ou apresentarem características específicas, como alergia alimentar, gravidez, etc.

Os 55 participantes restantes foram randomizados para um dos dois grupos e, antes de receberem a dieta, passaram duas semanas sendo avaliados para estabelecer a linha de base. Ao fim desse período, iniciou-se a fase de dieta, com duração de oito semanas, seguida de nova aferição de peso. Em sequência, ocorreu o período de “limpeza”, que durou quatro semanas, e depois mais duas semanas de aferição sem dieta padrão.

Ao longo dessas 24 semanas, foram realizadas seis rodadas de avaliação, incluindo peso, biomarcadores, questionários, entre outros.

Todas as refeições, lanches e bebidas de ambas as dietas foram preparadas e entregues nas residências dos participantes duas vezes por semana, já ajustadas às recomendações governamentais citadas anteriormente — como menor teor de gordura saturada, açúcar adicionado e sal.

Para garantir ingestão ad libitum, as porções foram dimensionadas para cerca de 4.000 kcal/dia, cabendo aos participantes decidir a quantidade a consumir. Sempre que possível, refeições e lanches foram pareados entre as dietas em um cardápio rotativo de sete dias.

Ao contrário de outros ensaios, e da percepção comum de que UPFs são pobres em nutrientes, a dieta de UPFs deste estudo utilizou produtos reformulados e nutricionalmente aprimorados, como cereais matinais, refeições prontas e alternativas vegetais.

Dos 55 participantes iniciais, 12 desistiram do estudo em algum momento. Ao todo, 50 participantes forneceram dados do desfecho primário para pelo menos uma das dietas — permitindo aferir a intenção de tratar, uma medida estatística que analisa todos os participantes de um grupo de tratamento, independentemente de sua adesão ao protocolo ou de terem recebido o tratamento planejado — e 43 forneceram dados para ambas as dietas.

Os voluntários tinham, em média, 43,2 anos, eram majoritariamente brancos (67,4%), mulheres (90,7%), com histórico familiar de obesidade (58,1%) e alto nível educacional. O peso médio foi de 89,8 kg, com IMC de 32,4 kg/m².

Na análise por intenção de tratar, a perda de peso após oito semanas foi de 2,06% na dieta MPF e 1,05% na UPF, sendo maior sempre na primeira dieta, independentemente do nível de processamento. A dieta MPF promoveu reduções significativamente maiores no peso (0,96 kg) e no IMC (0,34 kg/m²) em comparação à UPF, sem diferenças relevantes na circunferência da cintura, relação cintura-altura, massa muscular, óssea, livre de gordura ou percentual total de água corporal.

As análises secundárias mostraram que a MPF também reduziu, de forma significativa, a massa e o percentual de gordura, a gordura visceral e a massa total de água corporal, além de apresentar melhorias nessas medidas em relação à linha de base — efeito que não foi observado com a dieta UPF.

Após oito semanas, a pressão arterial foi significativamente menor em relação à linha de base na dieta MPF, mas não na UPF. Já a frequência cardíaca reduziu apenas na UPF.

Entre os marcadores clínicos, colesterol total, HDL e não-HDL diminuíram em ambas as dietas; triglicerídeos e hemoglobina glicada reduziram exclusivamente na MPF. Curiosamente, glicemia de jejum e LDL apresentaram redução significativa somente na dieta UPF.

Nos testes Power of Food Scale (questionário que avalia o impacto psicológico de viver em ambientes com alimentos em abundância, medindo o apetite por alimentos palatáveis em três níveis: alimentos disponíveis, presentes e degustados) e o Control of Eating Questionnaire (escala que busca mensurar apetite, desejo por diferentes alimentos e regulação do humor), houve pontuações menores na MPF, mas não na UPF. Embora ambas as dietas tenham melhorado o controle do desejo, somente a MPF foi capaz de aumentar o controle sobre o desejo por alimentos salgados e diminuir a dificuldade em resistir ao alimento desejado.

diminuir a dificuldade em resistir ao alimento desejado.

Nas escalas visuais analógicas (ferramenta que permite medir classificações subjetivas de fome, saciedade, desejo de comer e consumo alimentar prospectivo) não houve mudanças estatisticamente significativas. Entretanto, tendências apontaram menor fome pós-prandial, menor capacidade de comer, menor prazer em comer e maior saciedade na dieta MPF em comparação à UPF.

Igualmente importante, dados de ingestão alimentar autorrelatados demonstraram que a ingestão energética foi de -503,7 kcal/dia na dieta MPF e -289,6 kcal/dia na dieta UPF (diferença de 214,1 kcal). Ao comparar os mesmos participantes nas duas intervenções, a ingestão foi significativamente menor na MPF (-327,3 kcal/dia).

Dos 50 voluntários que participaram de pelo menos uma das duas etapas, 32 forneceram diários alimentares completos para a dieta MPF e 35 para a dieta UPF. A adesão foi maior nos primeiros períodos (MPF primeiro: 91,8% e segundo: 78,5%; UPF primeiro: 93,3% e segundo: 87,4%).

Não houve diferenças significativas na alteração da atividade física moderada a vigorosa, nem nos eventos adversos entre as dietas. Contudo, verificaram-se maiores problemas relacionados à constipação, refluxo, má digestão, fadiga, infecções e eventos relacionados ao sono na dieta UPF.

Caso os achados se mantivessem ao longo de 1 ano, isso resultaria em perda de peso estimada de aproximadamente 9 a 13% na dieta MPF e 4 a 5% na dieta UPF.

Com base nisso, os autores concluem que dietas ad libitum de oito semanas, baseadas em MPF e UPF e seguindo as diretrizes do Reino Unido, resultaram em perda de peso, com reduções significativamente maiores na dieta MPF. Enquanto a MPF promoveu maior diminuição de massa gorda e água corporal total, a UPF reduziu apenas a água corporal, sem impactar significativamente a adiposidade total. Diversos mecanismos foram propostos para explicar as diferenças de peso observadas, incluindo composição nutricional, textura, densidade energética e velocidade de ingestão.

Outro aspecto a ser considerado é que os UPF, mesmo reformulados, são hiperpalatáveis e têm sabor mais acentuado, o que pode estimular o consumo. Apesar das avaliações de apetite terem sido semelhantes entre as dietas, as classificações de sabor e palatabilidade foram significativamente menores na dieta MPF, o que pode ter influenciado o comportamento alimentar — algo evidenciado pelo fato de alguns voluntários terem abandonado a dieta MPF, mas nenhum, a dieta UPF.

O estudo apresenta limitações, reconhecidas pelos próprios pesquisadores. O “carryover effect” (que ocorre quando os voluntários são expostos a mais de uma intervenção, não sendo possível estabelecer se os achados decorrem da nova intervenção, da anterior ou de uma soma de ambas) não pode ser descartado. Além disso, como o estudo foi conduzido principalmente com mulheres, com alto grau de escolaridade e sem restrições ou intolerâncias alimentares, os resultados não podem ser generalizados.

A ausência de um ambiente controlado e a não devolução dos diários alimentares por alguns participantes limitaram o monitoramento da adesão.

Da mesma forma, devido ao desenho do experimento em “ambiente livre”, não foi possível avaliar diretamente o balanço energético nem utilizar biomarcadores nutricionais.

Quanto às nuances não mencionadas pelos pesquisadores, destaco que, embora os participantes estivessem em um “ambiente livre”, suas refeições eram entregues em casa. Isso levanta a possibilidade de que a praticidade desse fornecimento tenha influenciado os resultados.

O segundo ponto é que o estudo não foi cego e os participantes receberam suporte por meio de chamadas semanais com a equipe de pesquisa, para discutir problemas e incentivar a adesão. Esses dois aspectos introduzem viés tanto por parte dos participantes quanto dos pesquisadores. É compreensível que fosse impossível cegar os participantes, mas as chamadas semanais podem ter introduzido viés adicional nos pesquisadores.

No caso dos participantes, o não cegamento pode ter levado a alterações em seu comportamento, tanto no consumo alimentar quanto nas respostas a questionários de métricas subjetivas. Já entre os pesquisadores, o não cegamento pode ter influenciado a forma como se comunicaram ou prestaram assistência, potencialmente favorecendo um grupo em relação ao outro.

O terceiro ponto é que, por não estarem em um ambiente controlado, não é possível afirmar com certeza se os indivíduos consumiram os alimentos fornecidos. Embora a maioria tenha entregado diários alimentares, há risco de imprecisão e a possibilidade de que viés de memória ou de desejabilidade social tenha influenciado as informações relatadas.

Por fim — e talvez este seja o ponto mais polêmico —, embora muitos destaquem a superioridade da dieta MPF em relação à UPF e projetem que, se mantida por um ano, os resultados seriam ainda mais expressivos, é importante considerar que a adesão à dieta MPF foi menor. No longo prazo, é provável que mais indivíduos a abandonassem em comparação à dieta UPF, o que poderia levar à recuperação do peso perdido ou, na melhor das hipóteses, à ausência de nova perda de peso.

Outro aspecto relevante é que o estudo não foi voltado para perda de peso — ou seja, não havia déficit calórico —, mas sim para avaliar os efeitos do processamento dos alimentos em um consumo ad libitum. Mesmo nesse cenário, o suposto efeito viciante e hiperpalatável dos UPF não se concretizou, já que os participantes perderam peso e apresentaram redução da glicemia de jejum e do LDL-colesterol, dois biomarcadores importantes relacionados a diabetes mellitus e a doenças cardiovasculares. Esse resultado se deve, claro, ao fato de os UPF do estudo serem nutricionalmente balanceados e mais “saudáveis” que suas contrapartes industrializadas típicas.

O estudo, portanto, fornece evidências para hipóteses já levantadas: optar por alimentos MPF em vez de UPF, mesmo quando nutricionalmente equilibrados, pode favorecer a redução de peso, devido a refeições menos densamente calóricas, ingeridas mais lentamente e com texturas diferenciadas, entre outros efeitos.

Por outro lado, em termos de aplicabilidade no longo prazo, engajar-se exclusivamente em uma dieta baseada em MPF parece extremamente desafiador — para não dizer impossível — para grande parte da população. Isso pode comprometer a adesão e a consistência da dieta, limitando a manutenção ou o avanço da perda de peso ao longo do tempo.

Acredito que, com base neste estudo, podemos extrair uma reflexão importante, ainda que óbvia:

Uma dieta equilibrada, baseada em alimentos in natura e minimamente processados, continua sendo a opção mais saudável. No entanto, quando há a presença de alimentos ultraprocessados — surpresa —, a dieta ainda pode ser considerada saudável, desde que a proporção desses alimentos seja baixa em relação ao restante do dia, da semana ou do mês.

Mesmo em situações nas quais a dieta contenha uma quantidade elevada de UPF — algo que, pessoalmente, não recomendaria —, como ocorreu neste estudo, é possível observar algumas melhorias, desde que se opte por alternativas consideradas mais saudáveis.

 

Mauro Proença é nutricionista

 

REFERÊNCIAS

VAN TULLEKEN, C. Gente Ultraprocessada: Por que comemos coisas que não são comida, e por que não conseguimos parar de comê-las. São Paulo: Elefante 2024. Disponível em: https://editoraelefante.com.br/produto/gente-ultraprocessada/?srsltid=AfmBOorSztNZlnggHnzOFz5mWgvM5q164nQEpxuzX2Dv8szPNO3mbqz7.

DICKEN, S. et al. Food consumption by degree of food processing and risk of type 2 diabetes mellitus: a prospective cohort analysis of the European Prospective Investigation into Cancer and Nutrition (EPIC). The Lancet Regional Health – Europe. Vol. 46, 101043, Nov. 2024. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lanepe/article/PIIS2666-7762(24)00210-2/fulltext.

DICKEN, S. et al. Ultraprocessed or minimally processed diets following healthy dietary guidelines on weight and cardiometabolic health: a randomized, crossover trial. Nat Med (2025). Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41591-025-03842-0.