A jovem Jamilli Correa confere ao filme, de uma brutalidade contida, uma enorme carga de sensibilidade e humanismo. Coproduzido pela portuguesa Fado Filmes, o filme também teve contribuição dos irmãos Dardenne e de Walter Salles. A realizadora explicou tudo ao JN.

Como é que descobriu esta comunidade e a situação que vemos no filme?

Em meados de 2013 estava a lançar um documentário sobre o artista plástico Francisco Brennand, que é meu tio-avô e tive um encontro com a Fafá de Belém, de quem sou amiga há muito tempo. Foi ela que me contou. Tinha estado recentemente no Marajó e entrado em contacto com essa realidade terrível de exploração sexual de meninas. Aquilo tocou-me profundamente, como mulher e como documentarista.

Porque acabou por se decidir a fazer uma ficção e não um documentário?

Logo no início da pesquisa percebi que não conseguia contar essa história de uma maneira documental sem impor mais violência sobre essas jovens. Precisaria de pedir-lhes que contassem essas histórias muito traumáticas e reviverem essas violências. A ficção apresentou-se como a única forma de contar esta história, de uma maneira ética e respeitosa, sem trazer mais violência para uma realidade que já é muito violenta.

Como é que tomou então contacto com as histórias verídicas que a inspiraram para criar as suas personagens?

Foi um processo muito longo, muitas viagens ao Marajó. Tivemos contacto com assistentes sociais, conselheiros tutelares, psicólogos, agentes da polícia, toda a rede de apoio às vítimas de violência. Também percorri aquele rio, vi abordagens nos barcos, tive um contacto muito próximo, para não precisar de conversar com nenhuma das crianças que viveram essas violências. Conheci-as, mas não houve nenhuma abordagem direta.

A situação que vemos naquela região específica é comum em outras áreas da Amazónia?

A exploração sexual acontece a partir daqueles barcos que atravessam o rio levando mercadorias. Onde tem esse tráfego de balsas, isso geralmente acontece. Mas a exploração sexual acontece em todos os cantos do Brasil e infelizmente em muitos lugares do mundo. Dependendo das características geográficas, sociais, políticas e económicas de cada região, existe de maneiras diferentes.

A Marianna vem do documentário, mas conseguiu construir uma narrativa bastante forte.

Foram oito anos de escrita, foi um privilégio. As escolhas principais que balizaram o filme e a construção dessa narrativa, foi o desejo de retratar com verdade toda a complexidade da situação, sem criar personagens maniqueístas. Mas nunca foi escrita uma cena onde o abuso é mostrado explicitamente. Foi uma grande oportunidade como realizadora mulher de contar uma história feminina, sobre o ponto de vista feminino, sem um olhar masculino, sem a erotização dos nossos corpos.

Do ponto de vista logístico quais foram as principais dificuldades da produção?

Houve uma decisão que teve de ser tomada desde o início. Não era viável filmar no Marajó, que é muito distante. Após mais de um ano de pesquisa filmámos numa ilha em frente de Belém. Tivemos de fazer uma reconstituição, porque as casas do Marajó são projetadas para fora, ficam no rio. Não se pode sair de casa a correr, tem de ser a nadar. Isso transforma a vida das pessoas e diz muito sobre esse aprisionamento, sobre a maneira como aquelas meninas podem ou não pedir ajuda, podem ou não sair de casa.

Durante todo o processo sofreu alguma pressão para não fazer o filme?

Isso não aconteceu, mas por termos tomado os nossos cuidados desde o início. As pessoas não sabiam que este filme estava a ser feito. Ajuda sempre a captar recursos, dizer que um filme está a ser feito, mas no nosso caso preferimos não chamar a atenção para o que estávamos a fazer, para proteger a equipa e para que entrássemos com muito respeito nesse território e para tratar de tudo com muita ética.

Como é que descobriu a jovem protagonista, que apesar de nunca ter feito cinema tem uma presença muito forte?

Fizemos um processo de casting de quase um ano, com uma diretora de São Paulo e uma diretora local. Acabámos por encontrar a Jamilli já mesmo no final. Já estávamos em Belém quando conhecemos a Jamilli e as meninas que fazem as irmãs dela.

O que a convenceu que a Jamilli era a sua Marcielle?

A Jamilli tinha uma força, um olhar, uma presença. Desde que a conhecemos que vimos que ela tinha um foco, uma força, um magnetismo muito impressionante. Ela chamou a nossa atenção. A Jamilli, como as outras duas, são meninas urbanas, da periferia de Belém. Não tinham contacto com nenhuma comunidade ribeirinha, nunca tinham remado uma canoa, nunca tinham andado na floresta.

Como é que as prepararam para a rodagem?

Precisámos principalmente de entender a maturidade emocional dessas crianças. Quando já só tínhamos umas dez a quinze crianças fizemos um workshop para conversar com elas e com os pais e entender como é que elas se sentiam naquele ambiente, que experiências tinham tido. E a Jamilli foi-se logo destacando.

Ela estava consciente da história que estava a contar?

Ela sabia sobre o que era o filme. Os pais dela e de todas as outras crianças também. Mas como forma de as proteger tomámos a decisão de não lhes mostrar o guião. Toda a preparação foi feita de uma maneira muito lúdica. E tentei dirigi-la de maneira muito simbólica, para que não soubesse exatamente o que estava a acontecer em cada. Tivemos esses cuidados para que o ambiente fosse muito saudável e que não passassem por nenhum tipo de situação que pudesse ser emocionalmente violenta.

Como é que aconteceu esta coprodução com Portugal?

É uma coprodução muito especial para nós. O Luís Galvão Teles é um grande parceiro, juntou-se ao nosso projeto praticamente desde o início. Foi muito importante a parceria com a Fado Filmes.

Como é que se processou a colaboração com os Dardenne?

A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo começou um mercado em 2018, para ligar produtores brasileiros e internacionais. A Delphine Thompson, a produtora deles, estava nesse encontro e gostou muito do guião. Os Dardenne também e fizeram bastantes sugestões no guião. O nosso interesse era também tornar a história universal. Quando mostramos o guião a visões do mundo tão distantes das nossas, essa colaboração contribui para essa universalidade da história.

E no caso do Walter Salles?

A VideoFilmes do Walter coproduziu e distribuiu o meu documentário sobre o Francisco Brennand. Conheço o Walter há muitos anos, ele escreveu a minha carta de recomendação para a faculdade. Estudei cinema na Califórnia, ele também o tinha feito. Quando voltei para o Brasil procurei a VideoFilmes e começámos esta parceria. Foi quando lançava o meu documentário que tive esse encontro com a Fafá de Belém. Há um fio que liga todas as coisas.