“Quem salta, em primeiro lugar, é o corpo lírico de uma mulher posto em cena, que se narra, geralmente, em primeira pessoa do singular. Em segundo lugar, um inventário de outros corpos líricos, narrados de fora, que vão compondo um mosaico de histórias, vidas, mulheres e fantasmas. Em terceiro lugar, nós, que, ao lermos o livro, adivinhamos a iminência de um baque, som resultado do atrito causado pelo produto do salto, que é sempre – e principalmente – algum tipo de queda.”

Assim, a escritora paulistana Lilian Sais apresenta “Salto”, mais recente livro de Clara Amorim, com lançamento neste sábado (23/8), às 16h, no Espaço Mama Cadela, no bairro de Santa Tereza. Escritora e professora, Clara nasceu em Belo Horizonte e estreou na literatura em 2022 com “Canção para fazer o sol nascer”. Coautora da coletânea de poemas “Corpo de terra” (Quelônio), ela traz em “Salto” uma mistura original de versos, fragmentos, narrativas poéticas e memórias, apresentada em um projeto gráfico arrojado, de Ana C. Bahia, e ilustrações inspiradas de Olívia Viana, capazes de aprofundar o mergulho provocado pelas palavras da autora.

“Salto é um livro fruto de um processo de escrita que durou quase três anos, e que nasceu de um simples diário de natação. Eu vinha fazendo registros dessa nova atividade sem muita pretensão, só como um exercício de escrita, e um dia, depois de nadar, senti que algo havia me capturado naquelas cenas que eu observava: as pessoas indo e vindo na água, o movimento ritmado, os corpos do lado de fora ensinando. Sentei no vestiário e, ainda molhada, comecei a escrever o esboço de vários poemas que foram o embrião do ‘Salto’”, conta a autora de achados como “Imagine se aquela professora soubesse que estava ensinando a segurar o lápis a uma criança que, um dia, escreveria um poema para se salvar”.

“Eu ainda não fazia ideia de que aquilo resultaria num livro”, conta Clara Amorim. Ela iniciou uma pesquisa pessoal sobre o espaço da piscina, “quais representações ela ocupa no imaginário e na arte”. A partir daí, “uma coisa foi levando à outra: da piscina à água, da água ao aprendizado, do aprendizado às memórias, das memórias às histórias das mulheres da minha família”, revela. “E, quando percebi, os textos – que iam sendo escritos em formatos muito diversos: poemas, fragmentos, formas breves – formavam uma espécie de espiral em torno dessas palavras, criavam uma unidade, ainda que difusa. ‘Salto’, então, se transformou nesse livro molhado, azul, e eu tenho a impressão que lê-lo é como mergulhar e, debaixo da água, observar as figuras turvas de mulheres, suas histórias, para depois vê-las escorrendo”, complementa.

Borboleta 

Quero acreditar que existe algo nesse silêncio antes do começo, uma espécie de hesitação, e que do outro lado você também está interessada pelo que vai acontecer no momento em que nos cruzarmos. Estamos na mesma raia, cada uma num extremo da piscina. Seus óculos são escuros, então não sei se está olhando para mim. Não seguimos o mesmo ritmo. Eu, por vezes, paro só para te observar vindo em minha direção. Os braços como duas hastes firmes saindo da água, as mãos se juntando à frente da cabeça e logo submergindo de novo. A superfície recebe o tapa fundo dos seus pés. Por baixo d’água eu só posso imaginar a sua ondulação pélvica, impossível para as minhas hérnias de disco. Mas me delicio principalmente com a forma como você chega aqui, do outro lado, a cabeça subitamente saindo da água, a boca entreaberta, ofegante. O corpo todo se rendendo à borda da piscina. Não completei todas as chegadas. 

Volto amanhã.

*

a medida exata

de esforço

entre calcular o arco da queda

pressupor a gravidade

posicionar-se

subir discreta na ponta dos pés

e                      despretensiosamente

jogar no cesto de lixo

o que sobrou do lápis apontado

*

a medida exata

de esforço

entre calcular o arco da queda

pressupor a gravidade

posicionar-se

subir discreta na ponta dos pés

e                      despretensiosamente

agarrar o buquê

do casamento

*

Debaixo do chuveiro

prender a respiração

fechar os olhos

aprender a respirar

abrir os olhos

friccionar o sabonete

encher seu tronco de espuma

com a ponta do dedo

desenhar uma gravata

                     sempre uma gravata

fazer seu corpo escapar

de toda nudez

                     depois vê-la escorrer

debaixo do chuveiro

aprender a despedir

“SALTO”

De Clara Amorim

Curva Editorial

76 páginas

Lançamento neste sábado (23/8), às 16h, no Espaço Mama Cadela (Rua Pouso Alegre, 2048, Santa Tereza, BH)