Além das complicações respiratórias imediatas, um número crescente de evidências tem demonstrado importantes consequências neurológicas e neuropsiquiátricas em indivíduos que sobreviveram à fase aguda da covid-19. Essas sequelas abrangem uma ampla gama de sintomas que podem persistir por longos períodos após a resolução da infecção inicial. Esse fenômeno, comumente denominado “covid longa” ou “sequelas pós-agudas da infecção por SARS-CoV-2” (PASC, na sigla em inglês), evidencia a natureza multissistêmica da doença, com impacto relevante sobre o sistema nervoso central.
Um estudo conduzido por Taquet e colaboradores, com mais de 200 mil pacientes, indicou que cerca de 34% apresentaram déficits cognitivos persistentes por mais de seis meses após a infecção. Esse dado destaca o risco expressivo de comprometimento cognitivo de longo prazo entre os recuperados.
Apesar do crescimento da literatura sobre o tema, ainda persistem lacunas significativas quanto à prevalência, aos mecanismos fisiopatológicos e às consequências a longo prazo das complicações neurológicas associadas à covid-19. Compreender esses desfechos é essencial para o desenvolvimento de intervenções específicas que abordem tanto a saúde física quanto a saúde mental, com vistas à melhoria da qualidade de vida dos indivíduos afetados.
Esta revisão sistemática e meta-análise, publicada na revista BMC Neurology, tem como objetivo investigar os efeitos neurológicos prolongados em pacientes recuperados da covid-19, quantificando a frequência e a variedade dos sintomas.
Métodos
Esta revisão sistemática e meta-análise foi conduzida conforme as diretrizes MOOSE (Meta-analysis of Observational Studies in Epidemiology) e relatada segundo as diretrizes PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses).
As buscas foram realizadas nas bases de dados PubMed, Scopus, Web of Science, EBSCO e Cochrane Central, abrangendo publicações em inglês até 22 de março de 2024.
Foram incluídos estudos originais que avaliaram a prevalência de sintomas neurológicos persistentes (≥ 6 meses) em sobreviventes da covid-19, com foco nos seguintes desfechos: tontura, comprometimento cognitivo, estresse, dificuldades de concentração, depressão, problemas de memória (“névoa cerebral”), fadiga, distúrbios do sono, ansiedade, enxaqueca ou cefaleia. Foram excluídos os estudos com dados quantitativos incompletos ou imprecisos, ou seja, que não apresentaram proporções exatas para os desfechos primários.
A avaliação do risco de viés foi realizada por meio da Escala de Qualidade de Newcastle–Ottawa (NOS).
Resultados
A busca inicial identificou 10.443 estudos. Após a remoção de duplicatas, 9.152 estudos foram triados, dos quais 125 atenderam aos critérios de elegibilidade e foram incluídos na síntese quantitativa. Os resultados de prevalência foram demonstrados de acordo com cada sintoma neuropsiquiátrico.
Fadiga
A prevalência global de fadiga foi de 43.3% (IC 95% 36,1% a 50,9%). Observou-se heterogeneidade significativa entre os estudos (P = 0; I² = 100%), indicando variabilidade considerável nos achados. As análises de subgrupos, realizadas de acordo com o período de seguimento, demonstraram que a prevalência de fadiga foi de 51% entre 6 e 9 meses após a infecção, 24,9% entre 9 e 12 meses e 60% em períodos superiores a 12 meses. O teste de Egger indicou viés de publicação significativo (p = 0,0001), sugerindo a possibilidade de superestimação dos resultados.
Ansiedade
A prevalência geral de sintomas ansiosos foi estimada em 13,2% (IC 95%: 9,6% a 17,9%), com heterogeneidade estatisticamente significativa (P = 0; I² = 99%). Nas análises de subgrupos conforme o tempo de seguimento, a prevalência foi de 15,9% entre 6 e 9 meses, 8,7% entre 9 e 12 meses, e 18,5% após 12 meses. O teste de Egger não identificou viés de publicação significativo (p = 0,35), o que confere maior robustez aos achados.
Comprometimento cognitivo
A prevalência global de comprometimento cognitivo foi de 27,1% (IC 95%: 20,4% a 34,9%), também com elevada heterogeneidade (P = 0; I² = 100%). As análises de subgrupos mostraram uma prevalência de 27,4% entre 6 e 9 meses, 23,1% entre 9 e 12 meses, e 33,1% para períodos superiores a 12 meses. Quando os dados foram estratificados por gravidade da doença durante a fase aguda da covid-19, observaram-se prevalências de 23,4% entre pacientes que necessitaram de UTI, 23,7% entre pacientes com internação hospitalar convencional (casos leves a moderados), e 29,1% entre aqueles que foram tratados ambulatorialmente (infecção na comunidade). O teste de Egger apontou viés de publicação significativo (p = 0,0008).
Depressão
A prevalência geral de sintomas depressivos foi estimada em 14,0% (IC 95%: 10,1% a 19,2%), com heterogeneidade significativa (P = 0; I² = 99%). As taxas variaram conforme o período de seguimento: 18,8% entre 6 e 9 meses, 6,7% entre 9 e 12 meses e 19,1% após 12 meses. O teste de Egger não indicou viés de publicação significativo (p = 0,19).
Tontura
A prevalência geral de tontura foi de 16% (IC 95%: 9,5% a 25,7%). Houve heterogeneidade substancial entre os estudos (P
Cefaleia
A prevalência global de cefaleia foi estimada em 20,3% (IC 95%: 15% a 26,9%), com heterogeneidade marcante entre os estudos (P = 0; I² = 99%). As taxas por tempo de seguimento foram de 24,7% entre 6 e 9 meses, 13,6% entre 9 e 12 meses, e 27% após 12 meses. O teste de Egger indicou viés de publicação significativo (p = 0,03).
Distúrbios do sono
A prevalência global de distúrbios do sono foi de 24,4% (IC 95%: 18,1% a 32,1%). A heterogeneidade entre os estudos foi elevada (P = 0; I² = 100%). As prevalências conforme os períodos de seguimento foram: 33,1% para 6 a 9 meses, 14% entre 9 e 12 meses e 39,6% para mais de 12 meses.
As pontuações na NOS variaram entre 3 e 9, com a maioria dos estudos na faixa intermediária (5–7 pontos), indicando qualidade metodológica moderada. Viés de publicação foi detectado para distúrbios do sono, fadiga, déficits de memória, comprometimento cognitivo (p 0,05).
Discussão: principais sequelas neuropsiquiátricas de longo prazo da covid-19
Os dados evidenciam uma alta prevalência de sintomas neuropsiquiátricos persistentes entre pacientes com covid longa, sendo a fadiga e as alterações cognitivas como as mais comuns.
Os mecanismos subjacentes a esses sintomas são multifatoriais, destacando-se a neuroinflamação provocada pela ativação de microglia e astrócitos, com liberação de citocinas pró-inflamatórias (TNF-α, IL-6), além da disfunção de neurotransmissores como serotonina e dopamina — fatores que contribuem para quadros de ansiedade, depressão e estresse.
A análise indicou que 27,1% de 1.417.411 pacientes apresentaram comprometimento cognitivo, valor superior aos 19,7% observados por Zeng e colaboradores em 2023, em outro estudo, com 2.256 participantes. Esses achados reforçam o impacto do SARS-CoV-2 sobre redes neurais ligadas às funções executivas, memória de trabalho e velocidade de processamento.
A abordagem farmacológica para esses sintomas encontra-se em fase ativa de investigação, com ensaios clínicos em andamento avaliando a eficácia de antidepressivos, agentes anti-inflamatórios e neuromoduladores no tratamento dos sintomas neuropsiquiátricos da covid longa. Ainda não há protocolo terapêutico estabelecido até o momento. Diante desse cenário de incerteza, tem se consolidado a proposta de uma abordagem multidisciplinar, que integre reabilitação cognitiva, apoio psicológico e intervenções farmacológicas como estratégia promissora para o cuidado dos pacientes.
Entre os pontos fortes deste estudo destacam-se: escopo abrangente, com 125 estudos e mais de 4 milhões de participantes, critérios rigorosos de inclusão e qualidade metodológica; ênfase no seguimento de longo prazo (≥ 6 meses), oferecendo insights clínicos relevantes.
Como limitações, ressalta-se a alta heterogeneidade entre os estudos incluídos (delineamento, população, métodos), o que limita comparações diretas. Além disso, a variação nos períodos de seguimento entre os estudos pode ter influenciado as estimativas de prevalência. A padronização desses critérios em pesquisas futuras é fundamental para aprimorar a comparabilidade dos resultados.
Mensagem Prática
Esta meta-análise enfatiza a alta prevalência de sintomas neuropsiquiátricos persistentes associados à covid-19, sendo fadiga e comprometimento cognitivo como os mais comuns. O reconhecimento e o manejo adequado desses sintomas são essenciais para a melhora da qualidade de vida dos pacientes acometidos pela covid longa, sendo fundamental o desenvolvimento de estratégias terapêuticas integradas e o fortalecimento do seguimento clínico a longo prazo.