Nos novelos da perda
on Agosto 22, 2025 at 10:11 am
É difícil, para não dizer impossível, ler Valter Hugo Mãe e não ficar emocionado e refém de uma escrita que mais parece filigrana, pois ao ser tão preciosa e rendilhada nos abraça como um ente querido para não largar. Com Educação da tristeza (Porto Editora, 2025), regressamos a esse estado mágico e a um dos territórios mais constantes na obra de Mãe: a reflexão sobre a vulnerabilidade humana.
Os 27 pequenos textos presentes no livro, escritos em tons escarlate e azul, tal como os desenhos que os acompanham, foram nascendo durante cerca de um ano e meio, tal como o seu autor já revelou, e centram-se no desaparecimento de Eduardo, sobrinho de Valter Hugo Mãe, e Isabel Lhano, artista plástica e amiga do autor de livros seminais como A máquina de fazer espanhóis e A desumanização.
Partindo de um título paradoxal, mas revelador, neste livro entende-se a tristeza não como doença para a qual se procura a cura, mas um campo inevitável de aprendizagem, uma gramática silenciosa que molda identidades, e, por vezes, queima, outras cauteriza, mas nunca sara. Essa ambivalência encontra neste somatório de pensamentos e confissões o paradigma quando Valter Hugo Mãe se refere à memória do seu pai, à sua morte, principalmente no texto em que relata ter assistido à exumação do seu corpo.
A escrita única de Mãe mantém-se fiel à sua dicção singular, com frases que oscilam entre a poesia e a crueza, uma pontuação subversiva que desarma o leitor e uma cadência que mistura oralidade com lirismo. Essa experimentação formal, descarada, tantas vezes apontada como sua “imagem” de marca, funciona como dispositivo para aproximar o leitor da intimidade das “personagens”, e especialmente de quem a (d)escreve, despojando a narrativa de convenções, como, por exemplo, quando revisita heróis de uma vida ligada à música, com referências aos seus gostos, incluindo-se alusões aos Mão Morta, Sonic Youth, Nick Cave ou ao espetro punk, não esquecendo a beleza intrínseca das composições de Mahler ou Vivaldi.
Podendo ser entendido num universo mais (auto)biográfico como o partilhado em Contra Mim, este livro constrói-se a partir de figuras humanas que, mesmo citadas ou anónimas, fortes ou frágeis, transportam uma densidade universal retirada das mais comuns ações ou estados de alma. Porque, sejamos crianças, idosos, solitários, enquanto seres em perda fazemos parte de um teatro que traça o retrato onde os mais comuns dias se misturam com o trágico e o absurdo. É nessa tensão — entre a banalidade e o abismo existencial — que o escritor vencedor do Prémio Literário José Saramago, entre outros, reencontra a sua força e arte.
Por isso, ao invés de narrar grandes feitos, explora o rumor das pequenas vidas, conferindo-lhes dimensão quase mítica, segredando-nos ao ouvido temas que vão das obras em casa, da casa nova, dos “malditos” 50 anos de vida, dos projetos para novos livros, das gripes recorrentes e outras enfermidades, do excesso do perfume nos outros, da canseira que é ajardinar, ao ódio aos invernos com odes aos amenos 22ºC.
Valter Hugo Mãe volta assim a demonstrar, mesmo que não seja seu propósito, que a Literatura, com letra grande como gosta de escrever em Educação da tristeza, não teme ser simultaneamente opaca e profundamente emotiva, atribuindo à tristeza uma dimensão política, centralizando-a. Esse confronto confere-lhe resistência e propõe que olhemos a vulnerabilidade e a fragilidade como formas de conhecimento e aprendizagem, criando uma filosofia afetiva cuja doutrina é aceitar o que doí como intrínseco à condição humana.
Isso pode implicar uma leitura demorada, capaz de provocar desconforto, mergulhando-nos numa intimidade singular que funciona como terapia ou catarse face a uma dor que atravessa a vida comum, entrelaçada nos novelos da perda, da saudade e de um amor que não se extingue.
Apaixonado pelos sons, imagens e histórias que me rodeiam, gosto de refletir essas ideias por via da palavra, seja ela escrita ou falada, mas sempre sentida. O amor pela música, livros e quejandos, é coisa que, em mim, não encontra medida palpável, é forma de respirar que transcende fronteiras, funde ritmos, estilos e filosofias.
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