Há miúdos que crescem a admirar estrelas de futebol, “os Ronaldos e os Eusébios”: veem e reveem jogos para tentar reproduzir as mesmas fintas ou marcar golos como os deles. Mas Manuel Maria não era um desses miúdos. Porém, ídolos não lhe faltavam: nascido numa família de aficionados e forcados, já em pequeno era estes que admirava e que observava, tentando aprender como é que pegavam os touros. O destino, diz quem o conheceu, estava traçado: Manuel Maria seria forcado — e, se tudo corresse como esperava, pegaria touros no Campo Pequeno.

O destino acabou por ser cruel: Manuel Maria Trindade tornou-se mesmo forcado mas este sábado, aos 22 anos, morreu horas depois de ter pegado um touro, em plena praça do Campo Pequeno. A notícia chocou o mundo da tauromaquia e não só, com lamentos sobre o jovem que se “destacava na sua geração” a chegarem por todo o lado — o Governo já lamentou a “trágica” morte, com o secretário de Estado da Cultura, João Moura, também ele um aficionado, assegurando que Manuel “representava a juventude, a bravura e a dedicação que caracterizam a cultura e a tradição tauromáquica portuguesa”.

Quem o conheceu, e quem o viu esta sexta-feira fazer a pega que o levaria a perder a vida depois de uma violenta colhida que o deixou com danos cerebrais irreversíveis, assegura que essa “bravura e dedicação” foram evidentes, tanto na forma como se dedicou à atividade como na forma como encarou o último touro que pegaria. O peso do touro — 695 quilos — já começou a ser discutido como um potencial problema pelos aficionados, embora se destaque que a alta velocidade a que o animal corria terá sido mesmo o fator fatal.

Manuel nasceu numa freguesia do distrito de Évora, Nossa Senhora de Machede, há 22 anos, e toda a vida gostou de corridas de touros. Como descreve ao Observador Miguel Ortega Cláudio, cronista taurino e amigo de Manuel e da família, o avô era um “grande aficionado”, o pai era forcado, mas “mesmo que o Manuel não tivesse nascido neste mundo teria qualquer coisa de especial, e viveria para isto”: “Nasceu para ser forcado, sonhava com os touros, com as arenas, queria desde pequeno tourear. Há miúdos que têm os Ronaldos e os Eusébios, ele tinha os forcados. Isto é uma coisa com que se nasce”.

Segundo a mesma descrição, foi assim que Manuel se foi tornando um dos “forcados mais destacados” na sua geração: sempre quis ser forcado e tornou-se mesmo um no grupo do pai, o Grupo de Forcados Amadores de São Manços, que celebra agora 60 anos de existência. “Podia ter ido para grupos mais importantes, mas quis ir para o do pai”, e já era mesmo considerado um “ídolo” para miúdos mais novos de São Manços e uma “referência” para os outros, relata Miguel Ortega Cláudio.

Era “irreverente”, viveu os 22 anos com “uma intensidade fora do comum”, era um miúdo engraçado e que “gostava imenso de pregar partidas”, que pescava e fazia brincadeiras “de miúdos da aldeia, que vivem como não se vive na cidade”. Foi ali que decidiu não continuar a estudar, mas tornar-se tratorista, começou a namorar e tinha o sonho de se casar e construir família.

Mas a prioridade, continua Miguel Ortega Cláudio, era mesmo o mundo da tauromaquia. “Ele falava de touros desde que se levantava até que se deitava”. Tinha alguns sonhos para cumprir, e tinha realizado alguns este ano: fazer uma pega em Évora, ou nos 60 anos do seu grupo, e — “a cereja no topo do bolo” — fazer uma pega no Campo Pequeno.

“Quis o destino que ficasse lá”, lamenta o amigo, que estava na praça do Campo Pequeno quando se deu a colhida que tiraria a vida a Manuel Trindade. Percebeu a gravidade “pela cara” dos outros forcados. “Estava na corrida, foi mesmo por baixo de mim. Eu estava no camarote e foi mais uma pega. Assustei-me quando vi a cara dos outros. Percebeu-se que era grave, mas nunca se quer crer que seja tão grave”.

Quem percebeu mais rapidamente a gravidade da situação foi António Dinis Lúcio, cronista taurino que colabora com a empresa que organizou a corrida do Campo Pequeno. Estava a tirar fotografias e, por isso, tinha um “lugar privilegiado, por baixo do diretor de corrida”. “Rapidamente nos apercebemos, porque o embate foi muito violento e ele ficou inanimado, de bruços”, conta ao Observador. Percebeu que algo de grave se tinha passado — ainda assim, como Miguel Ortega, não tão grave que fosse resultar na morte do forcado.

A confiança que o grupo de São Manços tinha em Manuel ficava evidente: o cabo tinha-o elegido como “o forcado ideal para pegar aquele touro” imponente, explica António Dinis Lúcio, e via-se pelo posicionamento que Manuel tinha “experiência” e “confiança” — “pegava desde miudito” e “o cabo tinha muita confiança nele”. “Eu estava na trincheira e estava a comentar com um amigo ganadeiro [a pega], e vimos pela disposição dele que tinha conhecimento da dificuldade. Percebia-se que estava à vontade e confiante”. Nas fotografias e vídeos que tem revendo nas horas que passaram desde aquele momento, constatou que Manuel “fez tudo bem feito”, mas o impacto foi mais forte do que podia aguentar.

“Esteve muito bem, recebeu muito bem o touro, mas as ajudas não conseguiram parar o ímpeto do touro, que vinha com velocidade bastante grande, o que dificulta muito a ação dos forcados”, explica, frisando que tendo em conta a “violência com que vinha o touro quando embateu contra as tábuas” na zona dos curros da praça (onde são mantidos os animais), provocou um grande impacto.

A partir daí, os sinais de preocupação foram aumentando: a equipa médica de serviço e os socorristas foram muito céleres, mas “via-se na cara das pessoas a preocupação e apreensão”, nota. Foi preciso chamar uma Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER) do Hospital de Santa Maria, o que pôs quem assistia ao socorro — a pega de Manuel era a primeira e o evento continuou daí em diante — em alerta. “Já se temia o pior. Havia muitas condições de socorro, mas o embate foi de tal forma violento que só um milagre o podia salvar”.

Os médicos tentaram que o “milagre” acontecesse: Manuel foi levado já com ventilação assistida para o Hospital de São José, em Lisboa, onde foi tratado por diversas lesões, sendo que a mais grave aconteceu a nível cerebral, contava o portal Touro e Ouro, que noticiaria depois a sua morte. Esteve em coma induzido enquanto os médicos tentavam que o inchaço pudesse diminuir para que pudessem “intervir cirurgicamente”. Mas, na manhã deste sábado, a pior notícia chegava: as lesões eram demasiado graves e o jovem forcado não tinha resistido.

Nas redes sociais multiplicaram-se as homenagens e, entre os aficionados, algumas discussões sobre o tamanho e o peso do touro, e sobre se as suas dimensões teriam contribuído para este desfecho. Os cronistas e aficionados ouvidos pelo Observador relativizam esse dado. “Bons e maus touros há em todo o lado”, diz António Dinis Lúcio, recordando o episódio que levou à morte do forcado Fernando Quintela, na praça de touros de Moita do Ribatejo, colhido por um touro com bastante menos peso (530 quilos).

“A violência com que embatem contra as tábuas ou como pressionam o forcado pode causar desfechos complicados. Não tem a ver com a dimensão e peso do touro, mas a velocidade com que vai”, defende. Miguel Ortega admite que o tamanho do touro “podia ser um bocadinho exagerado” e que “é sempre um chamariz” contar com o touro maior ou mais pesado, mas recorda precisamente o caso de Quintela para dizer que “não é por aí”: “Já vi acontecer com pequenos e grandes. Não é normal haver tantos com este peso, mas acontece”. O regulamento dos espetáculos tauromáquicos estabelece pesos, mas mínimos, para os animais (de 410 a 450 quilos, consoante a categoria da praça).

O tempo é agora de luto para a família e a comunidade, com outras figuras a manifestarem o seu pesar — Carlos Pinto Sá, presidente da Câmara Municipal de Évora, conheceu Manuel e veio dizer-se “chocado” com a sua morte e com este “momento muito doloroso”; os empresários Luís Miguel Pombeiro e José Maria Charraz, das empresas Ovação e Palmas e José Charraz Tauromaquia, que operam no Campo Pequeno, também se disseram “profundamente chocados”; a Associação Nacional de Grupos de Forcados veio lamentar o sucedido e pedir que a “memória e o exemplo de coragem permaneçam vivos no coração de todos os que o conheceram e admiraram”. António Dinis sublinha essa coragem e remata assim: “É uma das contingências de uma arte que é muito radical. Se há desporto radical… é este”.