“Adoro falar que eu sou sapatão, tem muito a ver com a minha estratégia de enfrentar o preconceito”, diz Bruna Linzmeyer numa conversa de mais de uma hora no começo desta semana. “As pessoas xingavam as mulheres queer de sapatão no passado, aí a gente pegou essa palavra para a gente e tomou posse dela. Ninguém vai me atingir me chamando de sapatão”, afirma.
Muitas vezes na conversa com Bruna ela fala “a gente”, mas isso não é esquisitice de celebridade de falar de si mesma na terceira pessoa do singular. O “a gente” de Bruna quer dizer a comunidade queer, ou LGBT, na qual ela naturalmente transita, mas que também virou um objeto de pesquisa da atriz e modelo.
“Estudo teoria queer, me interesso por esse universo, estudo audiovisual queer, cinema queer. É um campo de pesquisa e de muito interesse meu”, conta. “Tem muitos trabalhos autorais que estou desenvolvendo que se relacionam com essa temática, por isso eu não me canso nunca de falar sobre esse assunto.”
Não dá para me aprofundar muito nesse assunto dos trabalhos autorais por um pedido da produção, não podemos revelar nem o nome do longa-metragem nem o tema. “Mas não é a história da minha vida, todo mundo me pergunta isso”, adianta. O que dá pra dizer é que Bruna Linzmeyer vai estrear como roteirista e diretora ainda neste ano.
Bruna mora no Rio, mas passou por São Paulo para fazer parte do lançamento da série “Máscaras de Oxigênio (Não) Cairão Automaticamente”, que estreia no próximo dia 31 na HBO. A série tem oito episódios de mais ou menos uma hora cada e é baseada em fatos reais. Se passa nos anos 1980, quando a epidemia da Aids, que atingia principalmente os homens gays, era quase uma sentença de morte. Sem cura nem tratamento eficaz.
O AZT, único medicamento disponível para conter o vírus na época, ainda não tinha sido liberado pelo governo brasileiro. Diante do desespero e da falta de perspectiva, um grupo de comissários de bordo passa a contrabandear a droga dos Estados Unidos.
Bruna interpreta a comissária Léa, da companhia aérea fictícia Fly Brasil, melhor amiga do comissário Fernando, personagem de Johnny Massaro, que contrai o vírus. E começa a fazer parte do esquema de contrabando por convicção de que aquela era a coisa certa a ser feita diante de tamanho descaso do governo brasileiro.
“Ela tem muita empatia com a causa, bota o trabalho dela, a vida dela, em risco para ajudar as vítimas do HIV/Aids. É a única personagem que não entra no esquema por causa própria ou para favorecer irmão, filho, marido”, diz Bruna. Sua personagem, apesar de não ser baseada em uma pessoa específica, foi construída a partir de muita pesquisa da atriz.
“Conversei com várias ex-comissárias de bordo que trabalhavam nessa época, inclusive uma delas que viveu uma história de amor muito parecida com a da minha personagem, que tem um caso com um piloto casado e acaba engravidando”, conta a atriz. “Foi um encontro muito lindo, ela me trouxe o uniforme da Varig que usava na época, tinha guardado esses anos todos. E contou que o piloto tinha sido o grande amor da vida dela.”
Apesar de tratar de um assunto terrível, triste e sério, a série não é sombria. Os comissários são muito amigos, mesmo fora do trabalho, e aproveitam a vida de viajante com a qual a maioria de nós só consegue sonhar. Um romance em cada porto, sabe? Muita balada, muito bom humor, mesmo lidando com uma ameaça impensável. “Foi com muita responsabilidade social e emocional que contamos essa história, de um momento terrível da nossa vida, do Brasil, do mundo. Ao mesmo tempo, fizemos uma escolha de falar sobre esse assunto de um jeito bem queer”, afirma.
O jeito queer a que Bruna se refere tem a ver com não se entregar diante de um inimigo tão poderoso. “A comunidade LGBT faz isso muito bem, dar a volta na dor. ‘Isso aqui é um problema, mas o que a gente faz com isso?’ E essa comunidade criou uma rede de solidariedade muito impactante que mudou de fato o curso da história.”
“O que essas pessoas fizeram nos anos 1980 transformou a visão do governo brasileiro da época e fez com que a gente seja, hoje, o único país do mundo que tem tratamento 100% gratuito no SUS, tanto para quem já contraiu o vírus como para quem quer se prevenir”, afirma.
Bruna mergulha de cabeça nas coisas por que se apaixona. Foi assim com o seu trabalho audiovisual, com a comunidade queer e, mais recentemente, com o futebol feminino. “O mundo do futebol tem muitas mulheres lésbicas e bissexuais, e elas falam muito abertamente sobre o tema e também sobre o preconceito. Essa foi a minha primeira conexão”, diz a atriz. “Agora sou uma aficcionada, não só pelo jogo em si mas por tudo o que ele significa culturalmente e socialmente. Só pra ter uma ideia, em 2015 não tinha transmissão de muitos jogos e a gente foi campeã da Copa América naquele ano, mas o Brasil não viu essa final”, conta.
A indignação dela vem repleta de dados: “O futebol feminino foi proibido durante 40 anos, desde a Era Vargas até 1981. Em 1941 foi assinado um decreto oficial que proibia as mulheres de jogar futebol, porque não seria compatível com o corpo da mulher, que devia ser mãe. Se foi proibido é porque existia e incomodava, né?”
A proibição acabou com as ligas, com os clubes da época, tudo que era oficial ou profissionalizante deixou de existir. “Só que as mulheres nunca pararam de jogar futebol. O que aconteceu foi que o futebol feminino se espalhou pelo interior e pelas periferias, onde tinha menos fiscalização.” O encanto de Bruna com esse esporte também passa por sua vida privada, já que sua namorada, Kin Saito, é diretora-executiva da Federação Paulista de Futebol Feminino.
“Eu fui para as duas últimas Copas do Mundo, na França e na Austrália”, conta ela, que quase não se aguenta de emoção com o fato de que a próxima Copa do Mundo será no Brasil, em 2027. “Vai ser muito especial, tenho certeza. Quem tiver oportunidade de entrar no campo para ver essas mulheres jogarem vai ser impactado pelo resto da vida.”
Pergunto se ela tem vontade de ter uma carreira internacional. “Acho que eu já tenho, de alguma maneira. Estive em festivais internacionais com filmes em que atuei nos últimos sete anos. Fui a Berlim, Roterdã, fui ao Sundance e esse ano fiz parte do Torino Film Lab, um dos laboratórios de roteiros mais importantes da Itália.”
“Se aparecer uma oportunidade para atuar em outra língua, beleza, mas tem muita gente no Brasil com quem eu tenho vontade de trabalhar”, diz a atriz. Por fim, conta que o que ela não quer perder, de jeito nenhum, é a oportunidade de encontrar as amigas paulistas e sair para dançar quando passa por São Paulo.
“São Paulo tem uma cena queer/sapatão eletrizante, principalmente no centro da cidade. São lugares de encontro, de flerte, de diversão. E eu adoro comer, beber, dançar. Dançar organiza muito a minha cabeça”, afirma. Só não peça fotos com ela na madrugada.
“Às vezes são quatro da manhã, eu tô no meio da rua, feliz da vida, bebendo minha cachaça, meu uísque, e vem alguém pedir para tirar uma foto. Eu negocio com a pessoa, ‘não prefere um abraço? Ou cinco minutos de conversa?’ E assim vou seguindo minha vida, tentando sempre estabelecer diálogos.”