É entre comunicações sobre a situação do terreno e a tomada de decisões no centro de coordenação de incêndio em Sátão, distrito da Guarda, que Carlos Ribeiro conversa com o Azul. O bombeiro e investigador do Centro de Estudos Florestais da Universidade de Coimbra fala sobre este ano de fogos intensos e as medidas que devem começar a ser tomadas imediatamente para prevenir incêndios futuros.

Na prevenção, é preciso apostar em fogos prescritos fora da época de incêndios e reforçar a sensibilização da população para a limpeza dos combustíveis. E também é urgente uma acção que tem de ser feita logo depois de um fogo na terra queimada, para evitar, por exemplo, que as cinzas deslizem e contaminem as linhas de água.

No terreno, onde as populações se vêem muitas vezes sozinhas a combater as chamas, a acção é difícil: “Tenho bombeiros que diariamente estão a ser ameaçados.”

Como investigador e bombeiro, o que pensa sobre o que se passa agora em Portugal?
Estou em Sátão [distrito da Guarda], a ajudar na coordenação dos incêndios. O que está a acontecer em Portugal é normal, porque os países que têm um clima mediterrânico tendem a ter este agravamento na intensidade dos incêndios.

Estamos a caminhar para o padrão que já vimos nos grandes incêndios dos Estados Unidos ou na Austrália. Claro que são escalas completamente diferentes: nesses países ardem milhões de hectares, nós andamos nas centenas de milhares de hectares por ano. As alterações que marcaram os EUA e a Austrália vão agora afectar os países do Sul da Europa na mesma magnitude, mas à nossa escala.

Com as alterações climáticas vamos deixar de ter só uma época de fogos.





Por causa das alterações climáticas aliadas ao nosso clima mediterrâneo?
Sim. Tivemos um Inverno bastante rigoroso, muito propício ao aumento dos combustíveis, e depois um Verão muito seco. Os combustíveis que se regeneram durante o Inverno são os que secam mais rápido no Verão, os combustíveis mais finos.

Os combustíveis finos são o quê?
São ervas, herbáceas. Normalmente é definido que abaixo de seis milímetros de diâmetro são considerados combustíveis finos, mas não são só esses que estão em stress hídrico. No Centro de Estudos Florestais temos uma base de dados desde 1987, e começamos a perceber que os combustíveis vivos, aqueles que fazem as trocas gasosas, fazem fotossíntese com a atmosfera, estão 5 a 10% abaixo da média normal para o nosso país, o que significa que estão a ficar cada vez mais em stress hídrico.

E isso resulta de ano após ano de calor extremo, da acumulação deste padrão climático?
Sim, mas vejamos: se não tivermos incêndios, é mau, porque Portugal, com o nosso clima, precisa de fogo. Dou-lhe um exemplo muito concreto: nos anos 1970, 1980, 1990, os EUA limitaram e proibiram o fogo na floresta. Isso fez com que houvesse um aumento muito grande da carga de combustível, que não se consegue controlar.

Mas não é deste fogo que precisamos. Precisamos do “fogo frio” ou controlado?
Fogo frio, ou fogo controlado, ou fogo prescrito, há várias designações. Prefiro chamar-lhe fogo prescrito. É quase como se fosse um médico. Temos que ter uma receita.

Para reduzir a carga de combustível em certas áreas?
Esse fogo prescrito pode ser feito com vários objectivos. Na defesa da floresta contra incêndios, é feito em zonas em que necessitamos de reduzir a carga de combustível.

Em Portugal estão definidas as áreas onde necessitávamos desse fogo prescrito?
Existe um Plano Nacional de Fogo Controlado, mas isto tem que ser feito a nível local. Cada município deveria ter um plano de fogo controlado.




Carlos Ribeiro é bombeiro voluntário desde os 15 anos
DR

E deveria ser executado no Inverno, certo?
Isso já depende, pois o técnico tem de encontrar a melhor prescrição para a zona que vai tratar. Alguns precisam de determinadas condições, como temperaturas um pouco mais altas. Mas se cada município conseguir tratar a sua área, será muito mais fácil. E temos também de olhar para as zonas privadas, claro.

A velha questão do território desordenado…
Sim, mas podemos dizer que isso é uma utopia, é impossível ter um território completamente organizado. Até porque o Estado é detentor no máximo de 10%.

Falta cultura de prevenção

Vemos que as populações estão muitas vezes sozinhas a controlar estes fogos.
Muitas vezes os bombeiros não têm capacidade de combater o incêndio e de acompanhar a sua progressão. O incêndio progride muito mais rápido do que a deslocação dos meios no território. Aqui, no incêndio de Sátão, tive uma reactivação que percorreu aproximadamente oito quilómetros numa hora, e já não havia forma de conseguir passar para a frente.

Mas o que temos são as populações que estão em casa, que estão perto desses focos a tentar…
Isto é a cultura de prevenção que está em falta no nosso país. Temos que mudar isto e todos em conjunto. Os incêndios desta última semana são uma catástrofe. As pessoas têm que entender que têm de se preparar para serem autónomas nestas circunstâncias.




Carlos Ribeiro é formador externo da Escola Nacional Bombeiros
DR

Como?
Olhe, por exemplo, limparem os terrenos à volta das suas casas ou, se não os limpam, denunciarem.

As pessoas não querem abandonar a casa quando têm fogo à porta, não é?
Também não defendo que as pessoas abandonem. Mas temos que perceber porque é que as casas ardem. No caso de 2017, de Junho e de Outubro, muitas das casas arderam por focos secundários. São partículas libertadas e que caem perto das casas.

Fagulhas?
Fagulhas. Essas fagulhas vão no ar e caem perto das casas. O fogo pode, então, entrar para dentro da casa.

E é aí que a população tem ajudado?
A população tem ajudado, e muito. A população tem-se visto muitas vezes sozinha, não digo o contrário​. Mas temos é que ter uma cultura de prevenção. Estive num incêndio no ano passado onde um senhor quis agredir-me porque não conseguia defender a serração dele​. Mas o senhor tinha aquilo cheio de plásticos, baldes de tinta, o mato encostado às paredes. Foram os bombeiros que criaram aquele problema?

O terreno devia estar limpo, é isso?
Aí é que está a tal cultura de prevenção que temos de trazer para a população. Se este bem é meu, não posso estar à espera que outros me venham resolver o problema. Claro que os bombeiros vão lá e tentam dar tudo para resolver, mas há situações em que é impossível.




Carlos Ribeiro é investigador na Universidade de Coimbra e bombeiro voluntário desde os 15 anos
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Incêndio de Sátão

Nestes últimos dias, esteve perante alguma situação que tenha impressionado de forma especial?
A brincar, costumo dizer que sou a pessoa que todos os dias estuda isto e cada vez mais sei menos. Este incêndio de Sátão, por exemplo. Fiz parte da primeira equipa a chegar e nunca pensei que o resultado final fosse este. Nunca vi incêndios de copas activos de forma descendente, a passarem por tudo, a passarem pelo meio das aldeias… Não adianta ter mais bombeiros, porque não conseguíamos parar o incêndio, não havia forma de o parar.

O fogo tem fortes aliados no terreno…
[O terreno] Tem mais combustível e está muito mais seco, [o fogo] fica incontrolável. Mas chegamos a um ponto em que há um limite. Não podemos. A nossa visão no centro de investigação não é que haja menos área ardida. A área ardida é uma consequência de todos os fenómenos e de todas as estratégias. Queremos que não haja vítimas. Infelizmente, os incêndios deste ano já têm duas vítimas mortais. Perante isso, arder mais mil ou dez mil é pouco importante.

O que vemos são as populações desesperadas e muitas vezes sozinhas. Quando vocês chegam, provavelmente são recebidos com críticas, protestos e muito medo, não é?
Continuo a ter aqui bombeiros que diariamente estão a ser ameaçados. As pessoas acham sempre que nada lhes acontece, até acontecer. E com esta cultura do “nada me acontece”, chega a hora e as pessoas vêm-se apertadas. Vi imagens de aldeias, nos incêndios de Vila Real, com as pessoas a limparem à volta das casas na hora em que estava a ocorrer o incêndio. Isto não pode acontecer. Vejo pessoas que vêm ajudar e têm-nos ajudado imenso, porque nós somos poucos, mas muitos também nos ameaçam e exigem o impossível.

Ainda vamos a meio de Agosto. Mesmo que os incêndios abrandem, ainda há muito trabalho a fazer.
É preciso chamar a atenção para a probabilidade de termos chuvas ainda no mês de Agosto. E o pós-incêndio é muito importante. É necessário sustentar solos, garantir que estas cinzas todas não vão para as linhas de água. É necessário começar a pensar nisto, a delinear uma estratégia, uma estratégia política e não andarmos só quando chegar Outubro e Novembro, a pensar o que é que se vai fazer. Há técnicas para sustentar o solo para garantir que, pelo menos, esta cinza toda que está agora neste território queimado não vá nas primeiras chuvas logo para as linhas de água, afectando outros ecossistemas. É importante que isto venha a ser feito com urgência.

Na sua opinião, este problema nunca vai deixar de existir?
Acho que o ponto-chave é conseguirmos mitigar, porque nunca vamos resolver… E também mal de nós se resolvermos os incêndios, porque todos os anos em que não arde estamos a agravar o problema. Precisamos é de encontrar soluções para mitigar estas grandes superfícies, para ganhar oportunidades nas zonas de abertura dos incêndios e conseguir parar o incêndio ou reduzir a sua velocidade e intensidade de propagação. Precisamos que haja uma cultura de protecção civil das pessoas, e para isto era preciso trazê-la para a escola, logo a partir do quinto ano. Este problema não se resolve isoladamente.