Para Ana Gabriela Batista Reis, de 34 anos, a morte do ex-marido representou uma esperança de reencontro com o filho. Quando navegava pelo Instagram e viu uma foto em preto e branco, com palavras de luto, mostrando Dany Kattan segurando Moisés Batista Reis Kattan, filho do casal, sentiu o coração disparar. Do Brasil, ligou para todos os contatos possíveis até descobrir que Dany havia morrido em um acidente doméstico — e que Moisés estava bem. “É minha chance de ter meu filho de volta”, pensou. Ana não estava longe do filho por vontade própria, mas porque sistemas jurídicos internacionais, paradoxalmente criados para proteger crianças, a mantinham separada dele.

O GLOBO conversou com quatro mães brasileiras que lutam pela guarda dos filhos, levados pelos pais para o exterior. Todas relatam terem sido vítimas de violência doméstica e denunciam um sistema jurídico que as deixa à margem quando se trata de direitos parentais. Mais do que disputas legais, o que se vê é a vida suspensa dessas mulheres: mães que gastam milhares de reais em advogados para defender seus direitos em países cuja língua mal dominam; que se mudam para acompanhar processos judiciais; que chegam a viver na mesma cidade dos filhos, mas sem poder abraçá-los. Enquanto isso, o tempo — ativo que não se recupera — avança, e a infância acontece longe do cuidado materno.

Professora de artes na rede pública de Brasília, Ana conheceu Dany, um refugiado palestino, pela internet. Foram 7 anos de idas e vindas entre o Brasil — onde nasceu Moisés, hoje com 6 anos — e o Líbano. Durante o relacionamento, Ana denuncia ter vivido múltiplas violências: física, psicológica, patrimonial e sexual, além de uma pressão constante para engravidar novamente.

Em 2022, durante uma passagem pelo Brasil, pediu a separação. O ex-marido reagiu de forma aparentemente amigável e propôs que, até ela se instalar, seria melhor Moisés ficar com ele no Líbano. Disse que seriam somente dois meses, mas nunca mais devolveu a criança.

Karin Aranha luta para rever o filho, que foi levado ao Egito escondido — Foto: Arquivo pessoal Karin Aranha luta para rever o filho, que foi levado ao Egito escondido — Foto: Arquivo pessoal

— Ele me convenceu — relembra Ana.

Ao tentar reaver a guarda, Ana se deparou com a barreira da sharia — conjunto de princípios religiosos que orientam leis e culturas de países muçulmanos. Embora não seja um código legal único, sua influência é inegável. Na prática, isso significa que, em disputas de custódia, prevalece a linhagem paterna.

— A sharia pode ser traduzida como um caminho de crenças e valores morais revelados por Deus ao profeta Maomé. Segundo ela, a nacionalidade e a religião da criança são vistas como pertencentes ao pai, em sociedades onde o patriarcalismo impera — explica a pesquisadora e professora Gisele Chagas, da Universidade Federal Fluminense.

Se, no mundo islâmico, a interpretação da sharia deixa as mães à mercê do patriarcalismo, em outras partes do mundo a Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças mostra como a lei pode ser usada contra mulheres em situação de violência. Criado nos anos 1980, o tratado é aplicado de forma rígida contra mães que fogem de países estrangeiros após sofrer violência doméstica.

— Mães que escapam de abusos acabam acusadas de sequestrar seus próprios filhos — explica a advogada Antilia Reis, especialista em defesa de vulneráveis.

O caso de Neide Heiniger, maranhense de 45 anos, mostra como isso funciona na prática. Ela denunciou o ex-marido suíço, Bernhard Heiniger, por abuso sexual contra a filha Moara, ainda bebê. Mesmo diante de laudos médicos confirmando indícios de violência, a menina foi repetidamente entregue ao pai pela justiça suíça. Em 2018, ao tentar permanecer no Brasil com a filha, Neide foi enquadrada pela Convenção de Haia. Hoje, não pode ver a filha sem supervisão, que vive na Suíça.

Segundo a Revibra Europa, organização que acompanha brasileiras em disputas internacionais de guarda, 95% dos 600 casos atendidos nos últimos cinco anos envolveram violência doméstica. Ainda assim, a maioria das mães perdeu a custódia.

Fabiele denuncia que um laudo psicológico forjado a  afastou do filho — Foto: Arquivo pessoal Fabiele denuncia que um laudo psicológico forjado a afastou do filho — Foto: Arquivo pessoal

— A aplicação restritiva da convenção tem ignorado a violência contra mulheres, transformando um tratado de proteção infantil em extensão de abusos — afirma Juliana Wahlgren, diretora da entidade.

Conhecida como Índia, Fabiele —que não revelou o sobrenome — vive situação parecida. Separada do filho Benício por decisão judicial na Argentina, denuncia que um laudo psicológico forjado a afastou da guarda.

— Tirar um filho de uma mãe é matá-la em vida — resume.

No caso da lei islâmica, é ainda mais difícil que uma mãe estrangeira ou não muçulmana consiga a custódia dos filhos, explica a advogada Adriana Chieco, especialista em Direito de Família:

— A lei islâmica prevê que quem detém a guarda deve criar a criança como muçulmana, oferecendo educação religiosa e moral — afirma ao GLOBO. — Além disso, a violência doméstica nos países islâmicos é um tema controverso, pois as interpretações são variadas. O Alcorão, por exemplo, prevê que as mulheres devem ter obediência estrita aos maridos, assim como que a eles é permitido “castigar” a esposa em algumas situações de desobediência.

Por isso, mesmo após a morte de Dany, em 2024, Ana não conseguiu trazer Moisés de volta. O reencontro foi emocionante, mas controlado pela família paterna. A Justiça local entendeu que ela “abandonou” o filho — interpretação baseada no fato de ter autorizado a viagem com o pai em 2022.

No Brasil, o Judiciário alega não poder intervir porque a criança está fora do território nacional. Hoje, Ana fala com Moisés por videochamada três vezes por semana e enfrenta depressão.

— O meu emocional está tão abalado que dificulta até o meu trabalho — desabafa ela.

Assim como Ana, Karin Aranha, de 44 anos, outra mãe brasileira, mostra que, para estrangeiras, as barreiras são ainda maiores. Seu filho foi levado ao Egito às escondidas pelo pai, Ahmed Tarek Mohamed. Desde então, sua vida virou de cabeça para baixo: deixou o emprego, mudou-se para acompanhar o processo e até se converteu ao islamismo na tentativa de se aproximar da criança. Vive na mesma cidade que ele, mas não pode vê-lo.

— Eu não sei o número que o meu filho calça, eu não sei o que ele gosta. Eu só quero ser mãe — afirma.

Karin acumula sete decisões favoráveis na Justiça brasileira, incluindo a prisão preventiva do ex-marido, procurado pela Interpol. Mas a lentidão dos trâmites a condena a perdas irreparáveis.

Para especialistas, é urgente não apenas repensar a aplicação da Convenção de Haia e pressionar por acordos que protejam mães brasileiras em países regidos pela sharia, mas também discutir o papel do Brasil nesse cenário. Diante de culturas e sistemas jurídicos que não reconhecem a violência de gênero como violação de direitos, a presença diplomática brasileira torna-se fundamental.

O STF já discute, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 7686, que crianças trazidas ao Brasil sem a autorização do outro genitor não sejam obrigadas a retornar ao exterior quando houver fundada suspeita de violência doméstica. É um passo, mas insuficiente diante da realidade de mães cujos filhos estão em países que não compartilham os mesmos referenciais de proteção.

A advogada Camila Maia explica que, nos países signatários da convenção, mães podem acionar a Autoridade Central Administrativa Federal (Acaf) ou recorrer a advogados locais. Já em países não signatários, como os que seguem a sharia, não há instância central. Nesses casos, a batalha é travada em duas frentes: na Justiça local, muitas vezes hostil às mulheres, e na brasileira, com o apoio da Defensoria Pública, de advogados particulares e dos consulados.

— Os casos são tratados como disputas de guarda comuns e decididos conforme as leis locais. No caso do Brasil, tem prevalecido o entendimento de que deve ser determinado o regresso da criança para o país de origem — afirma.