Estamos em julho de 1975, o País está a ferro e fogo. Parece uma novela. Todos os dias há uma montanha-russa de novos acontecimentos, mais surpreendentes e assustadores, cujo desfecho parece quase tirado a papel químico do que aconteceu na Revolução Russa, com a tomada de poder pelos sovietes. Desde o 11 de Março que o País virou à (extrema) esquerda. O PCP domina todos os órgãos de Governo do País; o Presidente da República e o primeiro-ministro são claramente comunistas, tal como a maioria dos ministros do IV Governo Provisório. O Conselho da Revolução – novo órgão criado após o 11 de Março – é também ele dominado pelo PCP.
O COPCON – órgão criado após a Revolução de Abril – tem Otelo Saraiva de Carvalho como comandante, que acumula com a Região Militar de Lisboa. Apesar de ter uma estrutura orgânica e funcional pouco definida, e muito dependente da Região Militar de Lisboa, constitui um órgão de coação e intimidação, caracterizado pelo total atropelo das regras de um Estado de Direito. Por ser um órgão militar, não tem de estar sujeito às leis civis e, por debaixo de uma suposta legitimidade revolucionária, detém pessoas de forma indiscriminada, com mandados de captura em branco, sem qualquer validação prévia de um juiz, ou apoio jurídico. Várias pessoas ou entidades são responsáveis pela criação de listas das pessoas a deter, como, por exemplo, no Governo, por via do Rosário Dias – o chefe de Gabinete de Vasco Gonçalves – responsável pela prisão dos principais administradores do setor financeiro. Também o Conselho da Revolução, com origem no gabinete de Rosa Coutinho, o próprio COPCON, entre outros. Qualquer pessoa com proximidade ao órgão de poder tem influência para pedir a prisão do seu opositor político. Vergonhosamente, em julho de 1975, existem mais presos políticos nas cadeias portuguesas que a 24 de abril de 1974.
Otelo tem vida própria, fruto de um ego estratosférico e de um deslumbramento com o seu próprio protagonismo, o que resulta num comportamento algo anárquico. É ingerível, muito influenciável e, por isso pouco confiável. Adora palco e visibilidade, talvez fruto do seu nome peculiar, que remetia a Shakespeare. No entanto, o COPCON e o próprio Otelo não são necessariamente marionetas totalmente controladas pelo PCP, ainda que, muitas vezes, seja manipulado por este. O próprio Conselho da Revolução queixa-se de que, muitas vezes, combina uma coisa com Otelo e este fazia outra. “Teria sido ultrapassado pelos acontecimentos revolucionários” – justifica-se quando confrontado.
O poder está na rua. Todos os dias há manifestações, protestos, distúrbios. Em cada esquina forma-se uma comissão de trabalhadores para despedir a administração da empresa, para se queixar dos baixos salários, em solidariedade com A, B ou C, contra o capitalismo, a burguesia ou o fascismo.
Desde Janeiro que o PS, PSD e CDS lutam contra a unidade sindical que o PCP quer implementar. Para os comunistas, a pluralidade sindical significa uma cedência à ideologia burguesa e o fim do seu controle absoluto sobre o proletariado. Os incidentes no 1.º de maio de 1975, no Estádio com o mesmo nome, mostram bem as divergências entre o PCP e os partidos que mais tarde se designariam como Eixo Democrático – PS, PSD e CDS. Mas Vasco Lourenço informa-nos que o Conselho de Coordenação do MFA era também ele a favor da unicidade sindical. A lei é aprovada e a CGTP absorve assim a Intersindical – a estrutura de sindicato único criada em pleno marcelismo.
Liderado pela esquerda radical, ainda mais revolucionária que o PCP, em cada esquina forma-se uma comissão de moradores, sem qualquer eleição ou participação efetiva dos moradores, mas com o pretexto de resolver o problema da habitação em Lisboa, onde os bairros de barracas proliferavam nos arredores. Começam a ocupação das casas devolutas, sem critério e sem qualquer respeito pelos seus proprietários. O COPCON de Otelo apoia, ajudando à mudança das fechaduras. Este justifica-se como sendo aquela a forma de resolver o problema habitacional de gente muito pobre.
A paralisação económica, o aumento do desemprego e a fuga da anterior elite política para o Brasil tornam muito atraente estas ocupações. Isabel do Carmo e o seu partido, PRP-BR, são uma dos maiores instigadores deste movimento, ao ponto de terem ocupado também um palacete na Avenida 5 de Outubro, a que chamam Universidade Ernesto e Luís (dois operacionais das Brigadas Revolucionárias mortos a colocarem uma bomba).