OUTROS 3 D || “Vivemos à sombra da carência”, afirma o economista José Tavares, que vê “a máquina da esperança” a engasgar: “O populismo de direita não existiria se não houvesse esta crise de promessas falhadas”. Defende a democracia liberal e critica o “desígnio” de sermos “um país tendencialmente gratuito”, até porque “um ranking em néon das virtudes e dos sofrimentos e das desigualdades é o princípio do fim de uma sociedade justa”. Em vez disso, considera que “precisamos de algum humanismo a doer”. E alerta para o declínio na saúde e na educação: “Caminhamos na direção de países como o Brasil ou Estados Unidos, onde certos percursos da educação pública, em certas geografias, são uma condenação para a vida”
José Tavares nasceu em 1966, doutorou-se em Harvard, é professor de Economia na Universidade Nova de Lisboa. É também escritor; quando escreve, assina com o pseudónimo José Gardeazabal. Nesta entrevista, as duas personas convergem para falar de desigualdade. Quando cita Don DeLillo: meio mundo com fome, o outro meio a alterar o design da cozinha.
(Esta entrevista faz parte da série OUTROS 3 D: desconstrução, desacreditar, desigualdade, um projeto de Anabela Mota Ribeiro para a CNN Portugal)
“A pobreza é a mais abjeta desigualdade”
Desigualdade parece ser simplesmente o oposto de igualdade. Ou tem outras definições?
A igualdade é uma métrica. Seja na economia, seja nos direitos, é uma métrica extremamente exigente, só fácil na aparência. Igualdade de que direitos? Nem todos os direitos são iguais, alguns são mais iguais do que outros. Igualdade de oportunidades ou de resultados? São velhas questões, não envelheceram mal. Continuam relevantes e entre nós. Vamos estar sempre à procura de igualdade, mas a igualdade é um ponto. A desigualdade é o desenrolar natural das coisas.
Como uma condição natural?
Infelizmente também o é, “natural”. Não nos devemos resignar a ela, mas precisamos de entender que desigualdades são decisivas, como garantir que do menu de desigualdades possa emergir um centro de dignidade humana. Um dos melhores impulsos para a igualdade tem a ver com a igualdade de direitos e um esforço para a igualdade de oportunidades.
Um esforço: a igualdade exacta de oportunidades e circunstâncias existe?
Penso que não. A igualdade absoluta e transversal é sensação de revolução, coisa de instante, talvez de cinema. Vivemos em sociedades diversas que procuram uma diversidade de bens, serviços, modos de vida que inspiram desigualdades. Há desigualdades pelas quais ansiamos — são sucedâneos de liberdade. E há desigualdades que não podemos tolerar.
Comecemos por falar de desigualdade em economia, uma definição concreta, mensurável, que se ensine e investigue nas faculdades.
Na economia, falamos muito de desigualdade de rendimentos, de riqueza, também outras. Falamos da desigualdade de rendimentos a partir de um índice que aceitamos como relevante, o índice de Gini, que vai de 1, máxima desigualdade, quando um indivíduo concentra todos o rendimento da economia, ao valor 0, quando todos os indivíduos detêm exatamente a mesma proporção do rendimento total. Nem o 1 nem o 0 aparecem na realidade. Os valores intermédios de desigualdade são bastante variáveis. O Brasil é um dos países mais desiguais, os Estados Unidos e o Reino Unido exibem níveis de desigualdade também elevados, para rendimentos superiores.
Onde nos situamos?
Portugal, entre os países de rendimento elevado, suporta níveis de desigualdade demasiado elevados para o rendimento dos cidadãos. Na economia e, atrevo-me, na vida, a pior das desigualdades é a pobreza. Que são coisas diferentes.
Pode dissecar a diferença? A primeira aceção, quase intuitiva, que temos de desigualdade é: pobreza.
A pobreza é a mais abjeta desigualdade. Refere-se àquele número de pessoas que estão abaixo de um limiar de decência quanto ao acesso aos bens e às oportunidades. Quanto a investir na educação e futuro dos filhos, conquistar tempos livres e acesso à cultura. Nas sociedades ricas, são um mistério. Quase bíblico, diria. Não se justifica a pobreza extrema no meio da prosperidade a que, apesar de tudo, temos acesso. A desigualdade nem sempre implica pobreza.
Em que circunstâncias não é assim?
A China em 1960 e 1970 era muito igualitária, porque os chineses eram quase todos pobres. A China viu a sua desigualdade aumentar, hoje tem níveis de desigualdade que se aproximam dos níveis dos Estados Unidos, mas tem muito menos pobres. O crescimento económico implica quase sempre o aumento da desigualdade e a diminuição da pobreza. É no combate à pobreza que nos devemos concentrar. A desigualdade não é coisa que gostemos de encarar, mas não é necessariamente má, por natureza. A pobreza, é.
A China em 1960 e 1970 era muito igualitária, porque os chineses eram quase todos pobres.”
“Muitas ideologias totais e totalitárias são sonhos burgueses que correram mal”
Essa é a sua definição enquanto economista. Enquanto pensador e escritor, quando usa o pseudónimo José Gardeazabal, que outras formas propõe para auscultar o mundo na sua desigualdade?
O drama da desigualdade: ter lado a lado pessoas que querem coisas novas e magníficas, e pessoas sem acesso ao mínimo, os pobres. O escritor Don DeLillo tem uma frase de que me lembro muitas vezes: meio mundo com fome, o outro meio a alterar o design da cozinha. É literário, mas é verdadeiro. A desigualdade magoa, mas a parte sombria da desigualdade é a pobreza intolerável.
Enquanto economista, a arma do pensamento é a lógica, que tem muitas limitações. Enquanto escritor, a melhor arma é a ironia e a partilha do que é o humano. A ironia é importante, permite-nos descartar as falsas fáceis soluções, os êxtases da virtude e das engenharias do ego — que não ajudam os pobres, a não ser os pobres metafísicos.
Algumas pessoas, quando falam da dificuldade de acesso a determinados caminhos de vida, assinalam o facto de não provirmos todos do mesmo lugar, da discriminação instituída que exclui em função da cor da pele, da faixa etária, do código postal do endereço.
Normalmente, quando falamos de discriminação ou de desigualdade, falamos de coisas como etnia, género, algum grau de deficiência, coisas importantes. Esquecemos o classismo, de que se fala pouco e que é particularmente importante em Portugal.
Porque é que se fala tão pouco? E porque é que se tem tanto embaraço em falar de dinheiro?
Fomos classe média muito tarde. No 25 de Abril ainda tínhamos uma percentagem elevada de pessoas a trabalhar na agricultura. Temos inscrito no nosso código a carência. Falar de dinheiro é trazer uma memória dolorosa, pesada: muito provavelmente, os pais ou os avós foram pobres. E usamos expressões como: passar dificuldades. Viemos da carência, do analfabetismo.
Apesar dos passos significativos dados depois da Revolução, e situou o 25 de Abril como o início do surgimento de uma classe média, a mobilidade social é diminuta.
Sofremos por sermos demasiado pequenos e demasiado burgueses, demasiado pequeno-burgueses. A partir dos idos de 60 e 70 do século passado, as nossas elites aburguesaram-se, pequeno-aburguesaram-se, e nunca mais pararam. Não fizemos a descolonização nem a democratização das mentes, e não me refiro às colonizações evidentes. Muitas ideologias totais e totalitárias são sonhos burgueses que correram mal. Até o nosso materialismo histórico foi mais materialismo que outra coisa. Somos adeptos do materialismo das pequenas coisas. Algum do nosso melhor pensamento social ainda é o que fica bem num jantar de amigos, à sobremesa. Mas os índices de desigualdade hoje e no 25 de Abril têm basicamente o mesmo valor.
Como assim?
Houve uma diminuição considerável da pobreza. Mas o nível de desigualdade manteve-se. Sem o Estado, teríamos uma percentagem de pobreza aterradora. Mesmo assim, parte do Estado tem trabalhado mais para a pose do que para o realismo. E fica cada vez pior na fotografia. Há um desalento que pode levar a uma mudança de políticas públicas, a micro-revoltas úteis. Estamos na armadilha do “tendencialmente gratuito”. Um sonho do tempo do ié-ié e das calças à boca de sino. Aspiramos a ser um país tendencialmente gratuito? Como desígnio, é pouco. Um ranking em néon das virtudes e dos sofrimentos e das desigualdades é o princípio do fim de uma sociedade justa. O diálogo e a insistência no ouvir o outro na praça pública é a maior virtude da democracia liberal — que é a pior democracia, à excepção de todas as outras.
Estamos na armadilha do “tendencialmente gratuito”. Um sonho do tempo do ié-ié e das calças à boca de sino. Aspiramos a ser um país tendencialmente gratuito? Como desígnio, é pouco. Um ranking em néon das virtudes e dos sofrimentos e das desigualdades é o princípio do fim de uma sociedade justa.”
Fala do apoio do Estado (sem o qual o grau de pobreza seria aterrador) e/ ou do apoio caritativo prestado por instituições como o Banco Alimentar ou a Cáritas? Que fornecem o básico: comida.
O Estado é importante nos programas que apoiam famílias mais carenciadas, na garantia de acesso à educação. A caridade, em termos numéricos, não é o que muda significativamente a pobreza. É porque o Estado falha e alimenta burocracias que excluem pessoas que caem nas suas malhas que a caridade tem lugar. O pensamento português sobre a desigualdade ainda é algo periférico e insistentemente místico. O pensamento sobre a pobreza vai pouco além de um mau cristianismo. Enquanto princípio de empatia, o cristianismo é óptimo e opera milagres. Travestido de populismo ou de marxismo funciona muito mal como política pública. A justiça social e o multiculturalismo sofrem às mãos do maniqueísmo, qualquer maniqueísmo. Precisamos de algum humanismo a doer, daquilo a que os anglo-saxónicos chamam tough love.
Os nossos índices de pobreza são ainda elevados, sobretudo para um país europeu.
Sim. Temos uma economia pouco produtiva, de impostos altos. Devíamos ser ou muito mais produtivos ou distribuir melhor.
Que outros países estão numa situação semelhante ao nosso, se falarmos de desigualdade?
Reino Unido, Estados Unidos, Israel.
Países que achamos que são riquíssimos.
Ou seja, desigualdade não implica necessariamente pobreza. Connosco desigualdade implica ainda muita pobreza.
“Somos uma sociedade de demasiados pobres por fora e de demasiados pobres por dentro”
Voltemos ao tema do classismo. Muitas pessoas sentem-se defraudadas porque cresceram com a expectativa de terem uma vida de classe média. E, apesar de cumprirem certos requisitos, de terem uma boa formação escolar, são excluídas de determinadas esferas — onde estão os bons empregos. Foi-lhes inculcada uma narrativa que esbarra no nepotismo. Os vínculos ao Estado ou a instituições de referência continuam a ser arrebanhados por certas famílias. Estes desiludidos não estão no mesmo lugar de desigualdade dos pais. Mas sentem-se numa posição de desigualdade em relação a outras pessoas da mesma geração.
O acesso à educação, que se multiplicou desde o 25 de Abril, criou expectativas legítimas. Há 25 anos os professores eram classe média e eram talvez o grande corpo de classe média. Tinham um rendimento que permitia casa, educar os filhos. Hoje, os professores estão a caminho de não serem classe média. Muito rapidamente. As expectativas começam a não ser cumpridas, a não ser cumpridas aqui. A emigração é uma resposta a essa frustração. Há uma coisa que me impressiona: quando se pergunta às pessoas as razões pelas quais estão a emigrar, não falam apenas do rendimento, de ganhar mais. Falam de uma coisa que mostra o fechamento da sociedade portuguesa. Dizem: “Eu sei que lá fora vou ser mais ouvido e ter mais oportunidades de progredir”. Isto é o classismo. Percebem que há fios invisíveis que as prendem. Os bloqueios que têm a ver com nepotismo, instituições antigas, empresas pouco dinâmicas que não vão atrás das pessoas melhores. Temos empresas demasiado pequenas, demasiado familiares, familiares no pior sentido.
Temos uma segregação geográfica violenta na educação, que se faz silenciosamente, e toda a gente está confortável com isso. Caminhamos na direção de países como o Brasil ou Estados Unidos, onde certos percursos da educação pública, em certas geografias, são uma condenação para a vida.
Já aflorámos este tópico: em Portugal não partimos todos do mesmo lugar, ao contrário de países como a Holanda, que tem graus de escolarização e de riqueza superiores aos nossos, consolidados há décadas. O mais certo é que o bom emprego seja dado a alguém que não é uma ameaça, que seja de confiança, que pertença. Invocar o argumento da meritocracia pode ser falacioso?
A meritocracia e a transparência vicejam em sociedades ricas e educadas, que já estão confortáveis há várias gerações. Nós ainda vivemos à sombra da carência. Assistimos a grandes proclamações pela escola pública, mas temos uma segregação geográfica violenta na educação, que se faz silenciosamente, e toda a gente está confortável com isso. A segregação geográfica é uma segregação económica e social. Há muitas resistências a ultrapassar isto, à direita e à esquerda. Caminhamos na direção de países como o Brasil ou Estados Unidos, onde certos percursos da educação pública, em certas geografias, são uma condenação para a vida. Atribuir cotas geográficas pode ser uma maneira de combater este problema. Por exemplo: os 20 ou 30 melhores alunos de um liceu, de todos os liceus, têm direito a entrar em que curso for. É uma forma de dar um sinal de oportunidade que sobrepuja a geografia.
Essa segregação faz-se em sectores vitais como a educação. O mesmo na saúde?
Na saúde e na educação, estamos a caminhar para sistemas muito mais desiguais. Temos que pensar seriamente em maneiras de não ir por aí. Pensando políticas públicas. Praticamos políticas contra a pobreza como antes sonhávamos com o dia em que seríamos o mordomo da procissão local. Somos uma sociedade de demasiados pobres por fora e de demasiados pobres por dentro. As duas pobrezas são irmãs e filhas uma da outra, aparentadas até à medula. Ainda não digerimos uma verdadeira revolução do pensamento e da liberdade. A liberdade, demasiadas vezes, ainda é jogo floral, e com pouca cor. As nossas malas de cartão são mentais, e menos dignas que as históricas malas dos pobres.
Somos cidadãos com plena igualdade de direitos. A partir de que momento este princípio constitucional começa a ser corrompido? Está plasmado na lei, mas não na vida de todos os dias. Como é que se cava o fosso?
Se falamos de igualdade de direitos na saúde e na educação, falamos do acesso a recursos. E estamos a piorar. Mesmo com um discurso mais errático, acho que não podemos hipotecar essa igualdade de direitos fundamentais.
O discurso político da extrema-direita assenta numa estigmatização do outro, do diferente. Pode fazer perigar alguns desses princípios já assimilados?
Antes de falar do populismo da direita, gostava de reforçar esta ideia: a pobreza como forma social de desigualdade é algo que tem que ser racionalizado. Durante muito tempo, a religião racionalizou a pobreza. Basicamente dizendo aos pobres para terem paciência. A ideia de paraíso é, no fundo, uma ideia de extrema liberdade e igualdade, num mundo que há de ir. Há um livro fantástico do Peter Sloterdijk, Cólera e Tempo, em que compara as diferentes atitudes em relação aos pobres. É vosso o reino do céu. E os pobres entrarão primeiro. Depois houve um sucedâneo, que nasceu também da perceção da desigualdade, que foi o impulso marxista. A mensagem foi oposta. “Não tenham paciência, não têm nada a perder a não ser as vossas grilhetas. É possível um sistema de grande igualdade e abundância.” Também não funcionou.
Que outras soluções?
A complementaridade entre democracia e prosperidade produziu sociedades de valor, que devemos aprimorar. Há quem trate essa síntese de liberdade e prosperidade como algo que se pode deitar fora, ou reciclar. É um erro. Claro que precisamos de um capitalismo mais justo, um consumismo mais sensato, mas os fetiches antissistema são bastante antigos e estéreis no combate à pobreza. Existe pensamento sobre políticas públicas que deve ser discutido e trabalhado sem fantasmas ideológicos. A realidade da pobreza não pode ser colocada ao serviço de ideologias, são as políticas públicas que devem ser colocadas ao serviço da erradicação da pobreza.
“O populismo de direita não existiria se não houvesse esta crise de promessas falhadas”
O mundo parece uma máquina acidentada, com um funcionamento desarticulado, ou mesmo desastroso. Convivemos diariamente com imagens de guerras. O paradigma de um mundo pacificado está em ruína.
A desigualdade está a aumentar em todos os países, dentro de cada país. Os rendimentos das classes média e média-baixa estão a diminuir no Ocidente. Fundamentalmente porque sofremos a concorrência das classes baixas e de rendimento ascendentes de vários pontos do planeta. Isto é paradoxal e dramático. Como disse, a China vê a sua desigualdade aumentar, os Estados Unidos também, mas, se olharmos o mundo como um todo, a globalização foi acompanhada de uma diminuição da desigualdade no mundo. Porquê? Porque países como a índia e a China lançaram decididamente dezenas de milhões de cidadãos para a classe média mundial nas últimas décadas. Há políticos populistas em alguns destes países emergentes, mas não com a voracidade e a exploração da desesperança económica que existe nos países ricos.
O mundo está extremamente interligado. Há uma fábrica a fechar em Portugal, a abrir na Índia, na Malásia ou na Indonésia, com salários mais baixos, para pessoas que precisam muito mais do que nós. Há uma desigualdade que está a vir desta porosidade de comércio entre o mundo, e que cria uma massa de descontentamento impressionante. Ou seja, o populismo de direita não existiria se não houvesse esta crise de promessas falhadas.
Que respostas existem?
Não são fáceis. O protecionismo será sempre uma má resposta.
O que é que deixou de ser possível?
Eu espero que não seja a possibilidade de sonhar com uma diminuição das desigualdades!
Sublinho essa resposta que traz a importância do ideário, da crença, indispensáveis para insuflar os dias e nos projetarmos no futuro. Senão sucumbimos.
O futuro ideal pode nunca chegar. Se for chegando aos poucos, já será bom. Essa máquina, a máquina da esperança, parece estar a engasgar. A matriz europeia é a de uma sociedade que respeita direitos fundamentais, os recursos são um grande alimento e instrumento de igualdade. Os recursos dão liberdade.
Nas economias desenvolvidas, alguns recursos começam a escassear. Há nos países europeus uma percentagem elevada de pessoas que dizem: os meus filhos vão viver pior que eu. A classe média que vive no centro de Lisboa sabe que, à falta de emigrar, os seus filhos não conseguirão comprar uma casa equivalente àquela em que viveram com os pais. Isto é marcante. Porque os anseios materiais também alimentam a máquina da esperança.
O que é que resta na Europa, e em Portugal, especificamente, do liberté, égalité, fraternité? Pesa sobre nós, como se fosse chumbo, a ideia de que o futuro é sombrio, não é esperançoso.
Penso que as desigualdades, a nível económico, podem agravar-se. Na Europa, liberdade, igualdade e fraternidade não foram sempre valores óbvios. Eles resultaram de uma necessidade de equilíbrio num continente cheio de conflitos, guerras, com muita competição e diversidade. Somos ainda, apesar de tudo, o continente em que estes valores de dignidade humana estão mais presentes. Espero que a Europa não perca este farol. Tenho esperança que os europeus percebam esta herança positiva. E confio que vai haver uma reação saudável para restaurar os valores da democracia.
Mesmo que seja uma longa travessia?
Espero que não seja uma longa travessia. Realisticamente, pode ser. Há um elemento de desigualdade e de pobreza, de carência e de sofrimento que estava excluído há anos das nossas vidas: a guerra. Era o nosso luxo, pensar que não haveria guerra na Europa. A guerra representa um outro grau de ameaça. Já não estamos a discutir sociedades mais ou menos funcionais. Estamos no grau zero, o grau da sobrevivência. É estranho. A guerra é uma grande distopia do passado, uma assombrosa máquina de sofrimento e desigualdade.
Era o nosso luxo, pensar que não haveria guerra na Europa.”
Os 3 D’s de há 50 anos eram todos esperançosos. Agora parece que todas as frentes estão com o sinal fechado. Em movimento, mas com o sinal fechado. Como é que esta desigualdade pode ser transformada num motor de luta? Como exprimir a insatisfação e mobilizar este impulso?
Pergunta difícil. A palavra luta está muito desvalorizada. As lutas que vemos são lutas de nicho que normalmente não são apreciadas por uma maioria.
Porque as pessoas não sabem por que lutar? Porque não há líderes?
Pode ser controverso o que vou dizer, mas digo: tornámo-nos demasiado céticos. Não vejo como é que vamos encontrar uma luta significativa e que envolva uma grande parte da sociedade se não houver alguns valores que nos unam. E os líderes estão muito desvalorizados. Perdemos duas vezes.
Qual é a controvérsia de dizer que nos tornámos muito céticos?
Porque o ceticismo leva-nos a sermos incapazes de nos mobilizarmos em conjunto. Não temos uma rede ideológica, espiritual. A nível individual, estou muito confortável com o ceticismo (desde que não seja cinismo). A nível social, precisamos de mais massa comum.
Uma causa que o mobilize?
A literatura. Uma das primeiras vezes em que percebi o poder da literatura foi a ler Camus. Tive a perceção da dificuldade de compreender o outro. A literatura é uma forma de tentar avançar no conhecimento do outro. Eu não acho que as pessoas se tornam melhores se lerem mais. Sabemos de várias pessoas que se tornaram piores pela leitura. Mas é um elemento de ligação. Outras: no cinema e nas séries reavivamos o fogo da igualdade. As pessoas absorvem códigos comuns. Nada disto é suficiente para nos mobilizar para uma luta política comum que ajude a diminuir as desigualdades.